segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Na baía de Guanabara

André Fossati


“Navegar no São Francisco é uma poesia”. André Midani observa tudo em silêncio. “Olha aquela embarcação ali Midani!”, Inácio chama atenção e ele responde com um sorriso. Ali no barco, à deriva, as histórias de vida vão se misturando. À beira do São Francisco todo mundo se encanta. “Impressionante. Ele é um personagem bonito e com orgulho de ser o que é”, André fala de Aureliano, músico antigo de Ibiaí que imita o som do trompete com a boca, tem timbre de voz muito bonito e sabe os sambas antigos de cor. O batuque de ponto Chique pode ser novo pra mim como para quem viveu a história da música bem de perto. Para quem foi importante, inaugurou e antecipou movimentos.

André Midani foi o responsável pelo lançamento da Bossa Nova. “Fui uma das duas pessoas que acreditaram que a Bossa Nova iria ser adotada pela juventude brasileira de classe média”. Numa época de intensas mudanças, explica. Mudança que fez Midani escolher o Brasil por acaso. Ele se mudou para França com 12 meses por causa da poliomelite. Foi chamado para combater na guerra da Argélia, mas, aos 21 anos, fugiu num navio com destino para América do Sul. “Eu ia para Buenos Aires, mas quando o navio atracou em Guanabara, eu fiquei por lá”. Arrumou emprego no depósito de uma compahia de discos até que sugeriu duas gravações que fizeram muito sucesso. Depois disso, foi trabalhar na área de marketing. Conheceu Menescau, Nara Leão e o pessoal que fazia uma música diferente. Eles começaram o movimento distribuindo disco no colégio, divulgando o novo som boca a boca.

O olhar aguçado, parece mesmo ter vindo de muito antes, ainda na sua juventude. Em 1967 ele já era presidente da Universal. De cara percebeu o talento de Caetano, Gil, Gal, Chico e Elis. “Estavam começando a despontar no colégio e eu ajudei a transformar em astro”, afirma. E muita gente mesmo diz que o tropicalismo não seria o mesmo sem André. Como se não bastasse, esteve a frente do rock brasileiro da década de 80, lançando bandas como Kid Abelha, Titãs e Ultraje a Rigor.

André Fossati


Eu brinco se a falta de movimentos musicais hoje não seria culpa de seu distanciamento do mercado fonográfico. Ele ri e diz que com seus 78 anos não teria mais a sensibilidade de antes. André está afastado da indústria há oito anos. “O que eu tinha que fazer já fiz”, conclui. Mesmo assim, fica curioso quando eu falo de novos movimentos como o Circuito Fora do Eixo e dos coletivos de música. “Talvez esse seja o novo rumo da música brasileira”, ele reflete e pede para eu mandar mais informações sobre os coletivos.

“O astro do futuro não se sabe”, André responde talvez um pouco cansado das perguntas que tentam fazer dele um adivinhador das tendências da música do futuro. No passado, Midani tocou bateria num grupo de jazz na França, mas achava que qualquer um “batucava" igual a ele. Por isso, desistiu de tocar. O nome da certidão é Andre Haidar Midani, a cidade natal, Damasco na Síria. Midani escreveu recentemente um livro:"Música, ídolos e poder. Do vinil ao download".

E assim, ele manteve o seu silêncio dentro do barco. Conversando sobre a paisagem, os pequenos acontecimentos do dia, Midani ia dando pistas da sua experiência e trajetória no meio musical. Principalmente quando alguém perguntava sobre música ou quando ele falava da crise das grandes gravadoras. “O grande erro das grandes gravadoras foi colocar a criatividade a serviço da tecnocracia”, essa frase ficou na cabeça. Só mesmo a petulância jornalística para contrariar a ordem estabelecida das coisas, quebrar a rotina com entrevistas num local onde pouco conta a história de cada um.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Aniversário de Inácio


Homenagem Aniversário from Cinear on Vimeo.


Texto de Rangel Moreira

Este dia é especial para Tomé Nunes e para você, pois sempre é do seu agrado realizar exibições em lugares peculiares. Tentamos preparar uma surpresa, mas basicamente não fizemos por que eu acho que tem que ser de noite e Waguinho que tem que ser de dia.

Mesmo assim, convidamos muita gente. O pessoal do barco, o caboclo d’água, o André Midani, o Dario, até a imprensa! Inclusive Ana, Aninha. “Nós semo tudo da família dela.”

O Fred e o Garoto Cósmico quase não vieram, pois entraram no buteco do príncipio era o verbo e ficaram viajando nos cegos jogando par ou ímpar. Você que é uma pessoa batráquio, uma pessoa rélpis, uma pessoa medioválgel. Ainda bem que faz aniversário em setembro, pois abril já está despedaçado.
André Fossati

O churrasco já está pronto! Compramos carvão e vamos assar a marvada carne. Os caçadores de sasci estão vindo com Pâmilla e Amanda para registrar a festa e colher umas pequenas histórias. O Fossati vai trazer a câmera para tirar um retrato pintado. O menino da porteira mandou lembrança, mas teve que ajudar o homem que engarrafava nuvens. Mas a gente espera, pois essa festa vai até o sol raiá.

A você que faz da sua vida um festival de cinema. Que se encanta com o encantamento alheio, nosso Feliz Aniversário!

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Última Viagem



Acordar com o ronco estrondoso do motor. Depois se acostumar com o barulho que passa a fazer parte da natureza. Estar cercado pelo rio todo o momento do dia. Você começa a fazer parte da natureza também. O que poderia ser desconfortável, traz o sono mais tranqüilo do mundo. As cabines são pequenas, com três beliches e um ventilador que pouco ameniza o calor, mas o rio é um sonífero que inspira paz o tempo todo. Durante o café da manhã é o momento de cumprimentar as pessoas e conversar sobre o decorrer do último dia. Mimi e Natasha são as guardiãs da cozinha. Ainda sem saber se elas preferem ser chamadas pelo nome da certidão de nascimento, Vando e Élcio. Mimi se faz de arredia, mas não esconde o fato de gostar de todo mundo do barco e de fazer a comida mais gostosa do mundo. Natasha, que eu carinhosamente chamo de Nati, é boa companheira de buteco e de fofoca.

Mas o zarpar da embarcação não é coisa fácil. A tripulação acorda cedo para arrumar o motor, liberar as cordas e desprender o grande barco que dorme atracado nas cidades por onde fazemos sessão de cinema. O rio está tão raso que parece impressionante o Luminar ainda navegar pelo São Francisco. Carlinhos e Zé baixinho são os motoristas do barco. Eles se impressionam, nunca viram o São Francisco tão raso, mesmo já tendo se aposentado na navegação.

Carlinhos corre para balisar o rio. O barco ameaça parar, faz um barulho de que irá se prender ao chão. Um metro e vinte centímetros, um metro, noventa centímetros, oitenta centímetros. Carlinhos indica a profundidade com os dedos enquanto Zé baixinho navega. Ficamos apreensivos, não dá para navegar com menos de noventa centímetros de água. Zé baixinho reduz a marcha, para o barco. O capitão pega a lancha e sai para verificar os pontos mais profundos do rio. Como quem sabe ler pensamentos, Zé baixinho logo entende para onde deve guiar a embarcação.

Carlinhos me explica que ele sabe a profundidade do rio pelo olho. “Ta vendo aquela linha mais escura do rio. Você percebe outra linha que segue do barranco. Ali é o lugar mais fundo”, ele explica e eu finjo que entendo. Navegar requer conhecimento que vem da experiência e um olhar muito aguçado. Eu tento acompanhar o raciocínio, mas me perco logo no início. Aos poucos vou tomando ciência da sorte e da habilidade da tripulação que fez o Luminar descer de Pirapora até a Bahia, num rio que já não permite navegação como era antigamente. Num rio que de tão raso, não deixa mais transportar carga. No decorrer da viagem, vimos embarcações atracadas por não conseguir seguir seu destino pela falta de água.

Escrevo agora durante minha última viagem pelo rio. Com uma dor que não se entende direito. Como diz Mimi: “Navegar é um vício”. Mimi fez curso de marinheiro, diz que está doida para voltar para casa, mas não esconde a ansiedade pela próxima viagem. Cristiano responsável por fazer funcionar o motor, todo o ano abandona o serviço em São Paulo para vir navegar com o Cinema no Rio. Ele diz que é diferente por causa do cinema e vive com a programação das sessões sempre em mãos. Isso faz com que ele dispense o bom dinheiro que ganha em São Paulo para navegar com o pessoal do cinema.

Marquinhos é o eletricista da Luminar. Ele desenha, pinta e faz sua arte. Gosta da bola de fogo, cachaça que faz ser menos tímido. Ele chegou com uma blusa amarela e queria que a equipe do Cinema no Rio assinasse. Ele queria guardar todo mundo de lembrança e toda hora vestia a camisa cheia de assinaturas. Entrevistamos ele que só dizia das boas amizades dentro da embarcação.

O capitão é o guardião do barco. Ele adquiriu a Luminar que antigamente trafegava pelo São Francisco dando assistência de saúde aos barranqueiros. Hoje a embarcação transporta projetos e pessoas que querem adentrar o rio. Lúcio Barreto viveu história. Perdeu a noiva na guerrilha do Araguaia. Vive com a bandeira do Che estendida no Luminar e quase não viajou com o Cinema no Rio por que não abria mão em substituir a bandeira. “Che era humano e um líder”, ressalta Lúcio.

Uma nostalgia de ter que abandonar o “big barco Brasil”. Brincadeira nossa para falar da convivência, que às vezes é difícil, mas que superamos com as comparações: “Fulano foi eliminado”. Se alguém fica de mau humor, logo contamina todo mundo. No final da viagem o cansaço vai minando a energia da equipe. Mesmo assim, a itinerância traz saudade. Dos jornalistas que vem fazer suas matérias e que adentram um pouco na convivência e dos convidados que passam um período com a gente e que trazem novidade para quem já se esqueceu do mundo lá fora. Saudade de cumprimentar os barquinhos que cruzamos pelo rio, saudade das histórias dos barranqueiros, saudade de poder olhar o São Francisco seco, mas ainda cheio de vida.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Eterno retorno

Pâmilla Vilas Boas



“O que essa mulher está fazendo?”. “Ela está filmando”, responde o pai de santo. “Caboclo não gosta de filme”. “É para mostrar nosso trabalho”. O caboclo não gostou das câmeras fotográficas, nem das pessoas estranhas. Durante os cânticos da inauguração do terreiro de Ubanda em Barra do Parateca, o caboclo foi a única entidade, que teve vida na terra, e não gostou da nossa presença. O vaqueiro não se importou, nem o marinheiro que sempre bebia cachaça. O Cícero, pai de santo do terreiro, agradeceu nossa presença e pediu uma salva de palmas. Ele queria que seu trabalho fosse mostrado em outros lugares e imaginou que a câmera gigantesca da fotógrafa fosse de filmar. “Nos meus 40 anos de trabalho, nunca ninguém de fora veio para apreciar”, ele diz e repete os agradecimentos sempre que desincorpora alguma entidade.

“Eu não posso ficar na areia, eu não posso ficar no mar. Minhas pernas ficam bambas e começam a rodar”. A gente chegou no terreiro de surpresa, para vivenciar a experiência. Os tambores são hipnotizantes e as cantigas também. Mesmo assim, o sentimento era de estranheza e de incompreensão. As crianças brincam durante os rituais e algumas até participam da roda. Foi difícil assistir a menina de 14 anos grávida incorporar e dançar com tamanha beleza os passos complicados do vaqueiro. Mas ela não ficou muito tempo com a presença dele, antes das cantigas acabarem, ela saiu da roda para se sentar na cadeira.

A menina de 14 anos vai ter filho logo e quer dispensar médico e hospital para ter o filho com a parteira mais famosa da cidade. Maria já pegou duzentas crianças e nunca morreu ninguém em suas mãos. Já passou por partos complicados, por crianças que vem sentadas e com o cordão umbilical em volta do pescoço. O enfermeiro da cidade quer acompanhar um parto com dona Maria que aprendeu tudo na experiência.


Maria recita as poesias do pai que cantava a própria vida

Mas a mãe de pegação, que trouxe tantas vidas para o mundo, tem um olhar desolador de quem por muito foi torturado pela vida. Ela conta dos detalhes do dia em que, durante a labuta, sentiu muita dor. Abortou ali mesmo, pegou o feto que já tinha formato de bebê, guardou num pano e continuou a colheita. Andou cinco quilômetros até sua casa com o sangue escorrendo. Limpou tudo para passar pela cidade e ficou em casa silenciosa. O marido estava bêbado e era mais seguro mantê-lo afastado. Ela sentia a dor em silêncio para que ele não ouvisse. Ficou assim até que uma vizinha estudada aplicou uma injeção e impediu Maria de morrer com hemorragia. Maria não tem medo da morte e diz até preferir do que viver calada com a agressividade do marido que, ao mesmo tempo em que tentava findar a vida da esposa com as facadas no peito, comprava remédio para ninguém ver as feridas pelo corpo. Maria cuidou do marido até a morte. Era assim os casamentos de antigamente, ela explica, até que a morte os separe.

Pâmilla Vilas Boas


Guerra

Maria é descendente de escravos. Assim como a maioria dos moradores de Barra do Parateca. Ela trabalhava na fazenda com seu sogro, até o dia em que foram expulsos por que o dono da fazenda tirou a filha dele. Tirar é um termo mais ameno para falar dos abusos que as filhas dos ex-escravos sofriam nas mãos do senhores.

Barra do Parateca já foi reconhecida como comunidade quilombola e traz logo na entrada da cidade um ônibus queimado como símbolo dos conflitos contra os fazendeiros. Foi justamente a filha de um poderoso fazendeiro da cidade que começou a história de quilombo. Eldina estava fazendo mestrado e começou a estudar as comunidades tradicionais. Barra do Parateca foi seu objeto de pesquisa. Mas o que era para ser apenas um simples objeto começou a se apoderar de todo o processo. O pastor Almir assim que tomou conhecimento da existência do termo quilombo, passou a estudar sobre seus direitos, montou a associação que hoje conta com o apoio da maioria da população do distrito. “A mesma família de Eudina hoje são nossos piores inimigos. Quando começamos a mexer com a terra, eles ficaram contra”, explica Almir.

Almir conta que a família plantava feijão e os negros do distrito trabalhavam a troco de comida. Recentemente, os quilombolas invadiram as terras da união por que não tinham mais onde plantar. “Chegou até polícia Federal. O armamento era para guerra e as crianças nunca tinham visto isso”, comenta Almir. A guerra desigual ainda continua. E os quilombolas disputam com juízes e advogados que fazem parte da família mais tradicional da região. Um passado que retorna nas histórias individuais e coletivas de um povo que busca o espaço de direito.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Chuva de fogos coloridos

André Fossati


O gado passou por cima da história, da comunidade, das casas, das quatro oficinas e do engenho. “Às vezes me chamam de negro. Pensando que vou me humilhar, mas o que eles não sabem é que isso só me faz lembrar. Que venho daquela raça que lutou para se libertar.” A música do começo do filme de Tomé Nunes se mistura à paisagem do quilombo e as histórias de degradação do ser humano. Não teve jeito de segurar o choro. A cantiga que o artista Joasir canta se mistura à homenagem da equipe para o aniversário do Inácio, idealizador do Cinema no Rio. Inácio que nunca teve medo de mudar as coisas e que fez questão de que o cinema fosse para Tomé Nunes, mesmo de última hora.

A emoção era de tristeza e alegria ao mesmo tempo. Tristeza pelo passado massacrante desse povo e alegria de ver a concentração nos olhos da comunidade que nunca viu cinema. Cada cena era motivo de riso. Cada história era motivo de discussão. “Se isso acontecesse comigo, eu nunca mais iria em festa nenhuma”, os adolescentes refletem sobre a animação da noiva que dançou depois de morta. Todo mundo ri alto e ao mesmo tempo com a experiência de ver cinema junto.

Maria Clara conhecida como Clarinha, não sabe ao certo a idade, talvez uns 70 e tantos anos. Ela nunca foi ao cinema. Tinha que cuidar dos 12 filhos e não dava tempo de parar para ver as imagens em movimento. Clarinha morava no quilombo até o dia em que os fazendeiros soltaram o gado e destruíram tudo. “Aqui era próspero. Vendíamos farinha, ovos e tinha até engenho”, ela relembra.

Depois da destruição, os fazendeiros ameaçaram matar todo mundo se eles não abandonassem a terra. O terreno era do negro que, na época dos escravos, tinha a posse. Mas não teve jeito de resistir. Maria conta que uma das moradoras morreu ao presenciar os acontecimentos. A outra amiga foi se contorcendo toda até travar as pernas e nunca mais conseguir andar. Não tinham muitas opções a não ser sair pelo mundo sem nenhum pertence. Maria foi para Carinhanha com seus filhos, catar os restos de comida do mercado. Depois ela voltou para o quilombo que nunca mais voltou a ter a prosperidade de antes.

Mas hoje o quilombo tem escola e tem Leobino como dedicado professor. Mãe Velha se lembra da época em que os filhos tinham que estudar em Carinhanha. “Em Carinhanha era tudo escolhido, até a merenda ia só para os brancos", conta. O filho dela era muito inteligente e resolvia, de cabeça, os problemas que a professora passava no quadro. Mas a professora só chamava ele de neguinho e o expulsou de sua classe. Mãe Velha só conseguia chorar porque o sonho do menino era ter formação. Ela foi até o padre que conseguiu uma bolsa e o menino estudou em escola particular. Hoje ele já se formou em enfermagem e trabalha em Belo Horizonte. “O sonho dele era cuidar de doente”, diz Mãe Velha.

A comunidade, silenciada pelo tempo, já se esquecia das tradições, brincadeiras e cantigas. Com a história do quilombo, as reuniões, a comunidade voltou a se lembrar do passado e reconstruir uma história. “Tânia meteu a mão em tudo e alevantou. Essa mulher veio de Deus e trouxe alegria para o povo.”, lembra. A Tânia é uma mulher de fora que, passando pela comunidade, teve o desejo trazer à tona a história e as tradições.
Cris Barakati

Relampejando

Os meninos jogam futebol no chão ainda coberto de poeira. As mulheres do quilombo aguardam nossa chegada debaixo da árvore de sombra boa. A equipe chega para inflar a tela e montar a estrutura. O caminhão com o cinema vem por estrada que afunda de poeira, estreitinha e cheia de curva. As pessoas nos recebem com sorriso e abraço apertado. Mas acham estranho que o cinema tenha chegado até ali. Brincamos de roda e improvisamos versos que são passados pelas gerações.

De tardezinha os ruídos, distinguimos que vinham do céu. A discussão era se ia chover ou não. A chuva é benção para quem aguarda ansioso pela sua chegada, mas pode impedir a sessão de cinema a céu aberto. Mesmo assim a equipe não desanimou, começou a inflar a tela de cinema que se sustenta pelo ar.

Os trovões já cortavam o céu, prenunciando o inevitável. Colocamos um primeiro filme para a comunidade ir chegando. As crianças já ocupavam as cadeiras a tempo, mas a idéia era juntar mais gente. Depois “do Até o Sol Raiá”, os vídeos dos patrocinadores que vem sempre antes do filme da cidade. No momento mais esperado, uma surpresa. Os filhos de Inácio e sua esposa começam a parabenizá-lo pelo aniversário. Depois Marquinhos, da tripulação puxa um parabéns. “é pique, é pique. Como é que termina?”, confunde Marquinhos no filme. A cena da equipe que continua a cantar a música. Inácio na sua inquietude, fica por um momento parado. Chora com uma lágrima discreta, mas perceptível. Chega e comenta: “A sessão está bonita, né?”, escondendo a emoção em ver o inesperado na tela.

Começa a Marvada Carne e a diversão da comunidade com a saga do matuto do interior que fez de tudo por um pedaço de carne de boi. A chuva cai do céu de uma vez só. Os relâmpagos iluminam a sessão que tinha luz apenas da tela de cinema. A comunidade se esconde. Alguns aproveitam da barraquinha de pipoca. Eu, Cris, Amanda permanecemos debaixo de uma árvore, sem medo dos relâmpagos. Cris fotografa os pingos de chuva na luz da tela de cinema. Eu não me movo, deixo a chuva cair e com olhar perdido vejo a festa do cinema acabar com o filme pelo meio. Aprecio a cena que não deixa de ser bela. A equipe da técnica e a produção correm de um lado para o outro, a comunidade na porta das casinhas de adobe, os relâmpagos adornando o céu e a chuva molhando o que parecia ficar seco para sempre.