O senhor mandou São Pedro descer para ver como era. Ele foi. Quando chegou, era forró pra todo canto. Churrasco, dança, música e bebedeira. Segundo as instruções recebidas, era para ele ir de manhã e voltar a tarde, mas só lembrou disso no terceiro dia. Ele voltou. O senhor, então, lhe perguntou:
— Como é que ta lá, Pedro?
— Uma beleza. Muito churrasco, festa, gente bebendo, povo zuando...
— E eles falaram de mim?
— Olha, para falar a verdade, nesses dias ninguém tocou no seu nome.
— Tudo bem.
E Pedro perguntou:
— Quando é que o senhor vai mandar eu ir lá de novo?
— Deixa passar o tempo
E passou o tempo. São Pedro estava louco para voltar à Terra e todos os dias ele perguntava para o senhor quando poderia visitar os seus amigos de novo. Certo dia, Deus o chamou.
— Pedro, hoje você vai descer — e pensou "pronto, é hoje que eu vou me acabar lá embaixo" — Você pode ir agora e ficar 15 dias — anunciou, Deus.
Então Pedro desceu, mas voltou naquele mesmo dia, a tarde. O senhor estava lá.
— O que aconteceu, Pedro?
— Olha senhor, aquilo lá não está prestando, não. Um calor enorme, seca, fome... não tem quem aguente.
— Mas estão falando de mim?
— É só nisso que se fala.
— Tudo bem.
Foto: André Fossati
Depois de uma grande gargalhada, todo mundo ficou em silêncio. Estavam atentos à fala de Edélcio Rodrigues dos Anjos, o seu Tezinho, o seleiro mais conhecido de Manga. Sua maneira de contar histórias, misturando o bom humor em todos os detalhes (muitas vezes sagrados), já é conhecida pelos amigos da cidade. Ele não poupa as piadas na hora de falar sobre um assunto sério. E também não poupa os assuntos sérios. A viagem de São Pedro foi a metáfora que ele usou para contar de um tempo bom, tempo em que a cidade tinha muitas festas e que a população vivia na fartura.
Principalmente fartura de peixe. Seu Tezinho nunca foi pescador, mas também já pescou muito. Colocava o anzol na água e pescava surubim, pacamã e "uns douradão que só vendo", mas parou já faz tempo. "Hoje acabou tudo. Os mais velhos ficam triste de ver o rio nessa situação. Os mais novos não ligam porque já conheceram o rio arrasado, ne?"
Naquela época tinha mais que peixe. Tinha vapor e caboclo d'água. Tinha rio cheio. "Uma vez eu fui banhar nesse rio e quase morro. Fazia três anos que eu não nadava nem nada. Eu passei um apuro... Num ficou santo no mundo que eu não chamasse. Quando eu ia afundando eu pensei em pisar na areia, aí eu vi que a água ficou pela cintura (risos). Eu sai caminhando. Parece engraçado, mas é porque naquela época o rio era fundo mesmo. Eu dei foi sorte de parar naquele lugar", rememora. Quem passa pelo São Francisco e sente a água batendo no joelho leva o pensamento pra longe.
Parece que junto com o esvaziamento do rio foi-se parte da cultura. Os forrós da cidade são uma recordação distante de quase todos os antigos moradores de Manga. Dos grupos populares só resta o São Gonçalo, que luta para não deixar a tradição morrer. Outros como o Reizado e os Reis do Jaraguaia, de origem quilombola, não existem mais. O secretário de Administração, fazenda e planejamento, Diogo Saraiva, admitem que essas culturas foram se perdendo por causa da "imigração e falta de incentivo".
Foto: André Fossati
Com relação à cultura não-tradicional, Manga faz parte da lista de cidades que tinham cinema. Há 50 anos atrás, na época dos coronéis, havia um cinema local que durou 10 anos. "Quando essas famílias foram perdendo o poder o cinema acabou. Não conseguiu passar de geração para geração", afirma Diogo. A única oportunidade da população de assistir filmes na telona é quando projeto Cinema no Rio vai para a cidade. No dia 12 de setembro, sessão de encerramento do projeto Cinema no Rio, os moradores assistiram aos curtas
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Ernesto no país do futebol e aos longas
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Vou rifar meu coração.
Por Juliana Afonso