quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Despedida com sabor de saudade

Atenção autoridades! A equipe inteira apresenta o mesmo sintoma: nos sentimos vazios. A nossa alma ficou no Velho Chico. É, ficou por lá. Decidiu que não ia mais voltar. Quis ver de novo o pôr-do-sol em Januária, tomar um café com os pescadores de Barra do Guaicuí, brincar nas prainhas que se formam em Pedras de Maria da Cruz, em tempos de seca. Enquanto o tempo dela passa devagar, no ritmo das águas do caudaloso São Francisco, a gente fica olhando para o relógio, marcando na folinha o momento de voltar e resgatá-la. Ou o momento de ser resgatado por ela.

Parte da equipe em Pirapora, no início da expedição. Foto: André Fossati

A verdade é que queremos ser resgatados: estamos ansiosos para voltar. Durante os quinze dias do Cinema no Rio tivemos o prazer de produzir dezenas de imagens, ensinar técnicas de fotografias para centenas de crianças e fazer exibições de cinema para milhares de pessoas. Fomos pagos com o conhecimento, as histórias e os sorrisos dos moradores ribeirinhos, sempre tão afetuosos. Quem, em sã consciência, ficaria feliz em dizer tchau?

Esse dia vai chegar. E enquanto isso, para os leitores que acompanharam a expedição (mesmo de longe), um recado do idealizador do projeto, Inácio Neves, e um vídeo produzido por Maria Ribeiro para mostrar um pouco da rotina da equipe durante os quentes e ternos dias que o nosso barco velejava em "alto-rio".


Queridos amigos,

Depois de muitas alvoradas e e entardeceres, entremeados de encontros, chegamos ao final da oitava edição do projeto Cinema no Rio São Francisco, com um desejo enorme de iniciar a nona. Pretendemos, no próximo ano, chegar até Juazeiro, na Bahia, navegando pela represa de Sobradinho, único local em que o projeto ainda não se fez presente.

Agradeço a toda equipe, aos patrocinadores, a Oi e a Petrobrás, aos ribeirinhos, a vocês que nos acompanharam e, principalmente, ao Rio São Francisco que, embora em agonia, continua possibilitando nossa passagem. Continuem acompanhando o Blog e aguardem os próximos capítulos!

Abraços, Inácio Neves

Produzido por Maria Ribeiro

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Bebo água de todo rio

Em nossa andança pelas margens do Velho Chico, exibindo algumas histórias no telão e ouvindo outras tantas em cada praça, quintal, ou botequim, a sensação é de mergulhar de ponta nos contos e causos de Guimarães Rosa, o escritor que  marcou a literatura brasileira com seus causos de inspiração do cerrado mineiro e seu povo.

(Em oficina, alunas registram as belezas da natureza e do povo de Manga. Foto: André Fossati)

Para quem “deu um dedo de prosa” com os moradores mais antigos de Matias Cardoso ficou a certeza de que o autor em algum momento ou dimensão conheceu os personagens como as gêmeas Simiana e Maria que estavam na primeira fila da sessão de cinema de da cidade.

Depois dos filmes, em um bate papo com a equipe do Cinema no Rio elas tentavam explicar a idade. “Naquele abril, sabe? A gente fez 90 anos. Agora nesse último abril que foi esse ano, a gente fez 74.” O ano é o de menos, o que interessa pra gente é o causo. “A gente veio pra cá no ano da fome, você lembra? A gente era criança. “Minha mãe trouxe nós duas assim, uma enganchada do lado e a outra do outro. Um dia Maria caiu na moita, mas eu fiquei bem agarradinha”, explica uma das senhoras falantes e cheias de gestos. “A gente comia fruta do mato e os peixes que o pai pescava no rio, quando ainda tinha peixe bastante”. Hoje o peixe acabou.

        — Mas as senhoras ainda vão ao rio?
        — Todo dia a gente pega a água lá.
        — Para quê?
        — Pra beber, pra lavar roupa, para cozinhar. A gente não gosta da água da Copasa porque é muito branca!

Entre uma história e outra, cantavam músicas, entoavam orações com os braços erguidos para a Igreja São Francisco e rodavam as saias sempre sincronizadas.

        — As senhoras vêm muito à igreja?
        — Sempre! O novo padre é uma beleza. Ele abraça a gente! Você conheceu o outro? Aquele Deus há de me perdoar.

(Foto: Inácio Neves)

E continuavam rodar embaladas por “Mulher Rendeira”.

        — “A gente gosta muito de cantar, de festa. Quando não tem festa a gente não está ‘sastisfeita’”, conta Maria.
        — Então canta mais uma:
        — Ah leke, leke, leke, leke. Leke é gostoso, né???

Beleza de versatilidade sertaneja tão louvada por Rosa que também deve ter conhecido o Galinha Tonta de São Francisco, que aprendeu a falar inglês, japonês e alemão nos sonhos ou a dona Pitú de Matias Cardoso que conta lúcida as histórias da seca de 1917. Eita que essa água do São Francisco, apesar dos pesares, está rendendo saúde e histórias.

“Bebo água de todo rio... Uma só, para mim, é pouca, talvez não me chegue. (...) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. (...) Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégio, invariável(Grande sertão Veredas, 2001, p. 32)

Por Camila Fróis

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A viagem de São Pedro

           O senhor mandou São Pedro descer para ver como era. Ele foi. Quando chegou, era forró pra todo canto. Churrasco, dança, música e bebedeira. Segundo as instruções recebidas, era para ele ir de manhã e voltar a tarde, mas só lembrou disso no terceiro dia. Ele voltou. O senhor, então, lhe perguntou:
           — Como é que ta lá, Pedro?
           — Uma beleza. Muito churrasco, festa, gente bebendo, povo zuando...
           — E eles falaram de mim?
           — Olha, para falar a verdade, nesses dias ninguém tocou no seu nome.
           — Tudo bem.
           E Pedro perguntou:
           — Quando é que o senhor vai mandar eu ir lá de novo?
           — Deixa passar o tempo
           E passou o tempo. São Pedro estava louco para voltar à Terra e todos os dias ele perguntava para o senhor quando poderia visitar os seus amigos de novo. Certo dia, Deus o chamou.
           — Pedro, hoje você vai descer — e pensou "pronto, é hoje que eu vou me acabar lá embaixo" — Você pode ir agora e ficar 15 dias — anunciou, Deus.
           Então Pedro desceu, mas voltou naquele mesmo dia, a tarde. O senhor estava lá.
           — O que aconteceu, Pedro?
           — Olha senhor, aquilo lá não está prestando, não. Um calor enorme, seca, fome... não tem quem aguente.
           — Mas estão falando de mim?
           — É só nisso que se fala.
           — Tudo bem.

Foto: André Fossati

Depois de uma grande gargalhada, todo mundo ficou em silêncio. Estavam atentos à fala de Edélcio Rodrigues dos Anjos, o seu Tezinho, o seleiro mais conhecido de Manga. Sua maneira de contar histórias, misturando o bom humor em todos os detalhes (muitas vezes sagrados), já é conhecida pelos amigos da cidade. Ele não poupa as piadas na hora de falar sobre um assunto sério. E também não poupa os assuntos sérios. A viagem de São Pedro foi a metáfora que ele usou para contar de um tempo bom, tempo em que a cidade tinha muitas festas e que a população vivia na fartura.

Principalmente fartura de peixe. Seu Tezinho nunca foi pescador, mas também já pescou muito. Colocava o anzol na água e pescava surubim, pacamã e "uns douradão que só vendo", mas parou já faz tempo. "Hoje acabou tudo. Os mais velhos ficam triste de ver o rio nessa situação. Os mais novos não ligam porque já conheceram o rio arrasado, ne?"

Naquela época tinha mais que peixe. Tinha vapor e caboclo d'água. Tinha rio cheio. "Uma vez eu fui banhar nesse rio e quase morro. Fazia três anos que eu não nadava nem nada. Eu passei um apuro... Num ficou santo no mundo que eu não chamasse. Quando eu ia afundando eu pensei em pisar na areia, aí eu vi que a água ficou pela cintura (risos). Eu sai caminhando. Parece engraçado, mas é porque naquela época o rio era fundo mesmo. Eu dei foi sorte de parar naquele lugar", rememora. Quem passa pelo São Francisco e sente a água batendo no joelho leva o pensamento pra longe.

Parece que junto com o esvaziamento do rio foi-se parte da cultura. Os forrós da cidade são uma recordação distante de quase todos os antigos moradores de Manga. Dos grupos populares só resta o São Gonçalo, que luta para não deixar a tradição morrer. Outros como o Reizado e os Reis do Jaraguaia, de origem quilombola, não existem mais. O secretário de Administração, fazenda e planejamento, Diogo Saraiva, admitem que essas culturas foram se perdendo por causa da "imigração e falta de incentivo".

Foto: André Fossati

Com relação à cultura não-tradicional, Manga faz parte da lista de cidades que tinham cinema. Há 50 anos atrás, na época dos coronéis, havia um cinema local que durou 10 anos. "Quando essas famílias foram perdendo o poder o cinema acabou. Não conseguiu passar de geração para geração", afirma Diogo. A única oportunidade da população de assistir filmes na telona é quando projeto Cinema no Rio vai para a cidade. No dia 12 de setembro, sessão de encerramento do projeto Cinema no Rio, os moradores assistiram aos curtas L e Ernesto no país do futebol e aos longas Rio e Vou rifar meu coração.

Por Juliana Afonso

domingo, 15 de setembro de 2013

Palavra de pescador

Dizem por aí que o rio já não enche a mesa do pescador. Que a água está suja, verde, que os peixes não querem nadar no São Francisco, nem fisgar a isca que fica na ponta do anzol. Mesmo quem sai de casa bem cedinho não consegue chegar com o barco cheio. Antes, era só uma tendência, observada por aqueles que vivem em simbiose com o rio. A tendência tornou-se realidade em pouco tempo.

Foto: André Fossati

Todo mundo dá pitaco e muita gente faz alarde, mas quem sabe mesmo dos prazeres e as dores de viver ao lado de um São Francisco degradado são os pescadores. Hilton Honório é um deles. Com 50 anos de vida na beira do rio, Hilton diz que nunca teve motivos para reclamar da pesca porque de dois em dois anos tinha enchente. Apesar dos problemas que as enchentes trazem, são elas que alimentam o Velho Chico pois quando ela chega a água vai para as lagoas, onde estão armazenados os peixes, e os leva para o rio. Agora, com a seca e a falta de enchentes, a situação é crítica. "Depois que acabaram as enchentes acabou o peixe", diz.

A esse problema se somam outros, como a poluição provocada pelas indústrias e pela rede de esgoto que provocam a mortandade de peixe de maneira esporádica. A adesão ao uso da rabeta (motor de barco) também atrapalhou a vida no rio, pois ajudou os pescadores a irem mais longe e conseguir pegar mais peixes.

Todos esses dados levam a crer que o número de pescadores diminuiu. Mas essa óbvia conclusão não é acertada. Segundo Hilton, há mais pescadores no município. "Existem 300 associados à colônia de pescadores de Pedras de Maria da Cruz. É um número alto. Antes o pescador não se interessava muito pela pesca, porque o ganho era pouco. Mas com o seguro desemprego os pescadores se interessaram mais. Isso garante que durante os quatro meses da Piracema a gente ganhe seguro-desemprego", explica. Ele mesmo admite que muitos dos novos associados sabem pescar "mais ou menos". Ri da piada, mas não desvia o olhar.

Foto: Inácio Neves

A solução para quem não trabalha no rio é viver no "seco". Não por menos, a cidade tem um grande número de pessoas empregadas pela prefeitura ou no setor de serviços. Antigamente, quando essas alternativas eram escassas, as pessoas buscavam um emprego na terra. Os problemas ambientais, porém, não atrapalharam só a pesca. "A terra enfraqueceu. Tanto as ilhas quando os lotes na beira do rio. Então o pessoal vai abandonando", conta. Muitos venderam a terra antes de a situação piorar, ou mesmo por pressão dos grandes fazendeiros.

O pai de Hilton foi uma das vítimas. "Meu pai tinha 5 hectares de terra documentado e o fazendeiro queria tirar dele de qualquer jeito. Acionamos a justiça e ganhamos. O próprio juiz falou para ele para deixar meu pai em paz, porque o fazendeiro já tinha milhares de hectares, Mas aí ele mandou jagunço matar meu pai. Deus ajudou, porque sempre que ele mandou gente lá a fazenda tava vazia. Mas meu pai ficou com medo e vendeu a terra para outra pessoa. Essa pessoa era comprador do fazendeiro", rememora. A luta do mais fraco com o mais forte no território do Velho Chico ainda é desleal.

Por Juliana Afonso

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Vida musical

"Choro santo do bom Deus
Gerou vida, planta, flor
Peixe, bicho, passarinho
E na sua ribanceira
À sombra do juazeiro
Muita gente se arrochou"

Por onde passam as águas do Velho Chico passam também as histórias de milhares de pessoas. É por isso que muitas delas já dedicaram estrofes, versos e até músicas inteiras a esse caudaloso rio. Com um breve passeio é fácil notar que, sem ele, nem metade das comunidades teriam sobrevivido nas secas terras que o bordeiam.

Foto: Juliana Afonso

Maria de Lourdes Oliveira, mais conhecida como Dona Lurdinha, nasceu em Itacarambi. Seus pais se mudaram para a cidade logo depois do casamento, com a promessa de uma vida melhor. Talvez por isso que ela cante Meu Rio São Francisco com tanta força. Essa alegre senhora de cabelos grisalhos e brincos de pérola falava sorrindo sobre os 68 anos vividos à beira do do rio, onde a água, a comida, a família e a própria vida eram comemoradas a cada dia como uma benção. "Esse rio é tudo pra mim e pra meu povo. Não tem como imaginar o que seria disso aqui sem ele", afirma.

De todas as alegrias que o rio deu à Dona Lurdinha, a música é a maior delas. O Reizado, o São Gonçalo e o Batuque são algumas das tradições das quais nunca deixou de lado. Os cantos e os ritmos fizeram parte da sua vida desde pequena. "Minha mãe sempre participou do Reizado. Ela tinha uma voz linda, linda". Aos 16 anos, com a permissão da mãe, ela pode entrar na roda.

Fomos recebidos de braços abertos e toques de zabumba. O hino de Itacarambi, o Meu Rio São Francisco e as melodias do Reizado formaram a trilha sonora que acompanhou a nossa tarde e que acompanha, ainda hoje, os dias de festa do grupo.

Foto: André Fossati

O grupo nunca deixou de cantarolar os ritmos que embalam a vida dos ribeirinhos, ainda que com o tempo e as mudanças da vida, muitos saíssem e muitos entrassem. De uns tempos pra cá, essa perda foi ainda maior, mas a Dona Lurdinha e seu marido sustentaram a tradição em Itacarambi. "Ficamos parados por um tempo, mas nunca abandonamos. O pessoal diz que se eu deixar o grupo muita gente vai querer deixar também. Não tem como parar, ne?", ri, com a sorriso de quem sabe a importância que a cultura tem.

Por Juliana Afonso

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Outro olhar

A cada vez que o barco do Cinema do Rio atraca em uma nova cidade, a equipe de água se encontra com a equipe de terra para começar as pesquisas culturais e os preparativos para sessão. As atividades incluem uma oficina fotográfica com crianças e adolescentes com a proposta de estimular novos olhares para o seu espaço.

Foto: André Fossati

Em tempos da popularização da imagem e sua mediação instantânea, as oficinas, ainda que curtas, trazem a reflexão sobre a fotografia documental, a fotografia como arte, ou até o fotojornalismo e outras vertentes em que a imagem supera a condição de puro registro.

A inspiração para as crianças são fotografias com recortes criativos, uso lúdico da luz e a sombra, espelhos d’água, contrastes e detalhes que contam histórias e provocam reflexões.

Foto: André Fossati

Segundo o fotógrafo Luiz Ferreira, um dos facilitadores da oficina, com o advento da máquina digital, grande parte das crianças não vêem mais a experiência de fotografar como algo inédito. “Na verdade, o encantamento vem das novas abordagens da imagem. Geralmente, os adolescentes estão acostumados a voltar a câmera para si ou para o espelho, a nossa proposta é estimulá-los a voltar a câmera para as suas cidades e comunidades para que eles possam perceber a própria realidade”.

Luiz relata que, muitas vezes, quando a criança pega uma câmera, ela consegue recortar cenas que lhe pareciam banais. Isso faz com que ela valorize ou entenda melhor seus próprios espaços.

Foto: José Maria durante a Oficina lúdica de fotografia em Cachoeira do Manteiga

O educador lembra que desde seu surgimento, a fotografia é usada para memória, mas que também pode ser usada para a expressão abstrata, sensível e poética. “A fotografia é a escrita com a luz, mas nos acostumamos a escrever apenas textos dissertativos, podemos aprender a escrever crônicas, poesias, contos”.

Por Camila Fróis

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Relatos de um tempo bom

Antigamente era muito bom. Tinha muito vapor. Eles chegava era todo dia. Tinha o Wenceslau, o Benjamin, o Barão, o Mata Machado. O único que escapou dessa mortandade foi o Benjamin. Mas só anda lá, pra cá não vem porque ta seco. O rio foi aterrando, aterrando, que nem vapor tem mais. No tempo bom o rio era cheio, com muita água, muito peixe. A coisa que eu mais gostava nessa época era pescar. Eu pescava de linha, pra me divertir mesmo. E tinha muito peixe. Agora o rio ta seco. Olha moço, foi bom tempo pra pouco tempo.

Foto: Inácio Neves

Um dia eu fui apanhar água no rio e chegou o Wenceslau Braz. Porque eu fiquei olhando pro vapor, com a lata na mão, meu pai me puxou e disse "moleque, enche a lata e vai embora". Eu enchi a lata e fui embora. Outro dia aconteceu a mesma coisa e um caciquinho puxou a minha orelha. Eu fui embora e ainda fui feliz. Ele puxou minha orelha e não contou nem meu pai. Porque se ele contasse não ia ficar assim (risos). No tempo antigo o pai corrigia o filho. Quando eu era criança ele falava "vai fazer isso", e eu fazia, ou "vai sentar ali", e eu sentava. 

A melhor lembrança que eu tenho é do meu tempo de criança, de rapazinho. Eu panhava a minha espingarda pra caçar. Andava pra todo lado. Pegava minha linha e ia pra beira do rio. Pescava tudo que era peixe. Hoje eu não posso pegar uma espingarda, não posso puxar uma linha. Se eu saio com uma arma a polícia me toma porque não pode atirar. Se eu vou no rio, jogo a linha e não pego nada.

Januária era bom. Aqui tinha duas bandas de música muita boas. Hoje não tem nada. Acabou tudo. Naquele tempo tinha rede de caboclo, tinha rede de pastoras, tinha a marujada. Hoje acabou tudo por causa dessas políticas porcas. Até as festas que tinha aqui acabaram. A Semana Santa era boa. Na Semana Santa você tem que comer carne porque não acha peixe.

Você sabe de uma coisa? Januária tinha bonde. Ele saía de onde antigamente era a Barra e vinha até a praça aqui. A linha ia da casa do fazendeiro até o sitio do fazendeiro. Esse fazendeiro era italiano que vinha de uma família muito rica. Eles tinham muito gado. Ele fez o bonde azulinho, e de madeira, de fora a fora. Só a família dele usava. E ele montava no bonde, enchia de flores e ia cantando. Os homens iam tudo atrás. Um dia o bonde descarrilhou e machucou um monte de gente. Aí eles decidiram desmanchar. Nunca mais teve bonde. Tem uma rua aqui e, Januária que chama rua do Bonde por causa disso. 

Também lembro do cinema, mas já tem mais ou menos 50 anos que eu não vou em um. Porque depois que acabou o Cinema aqui em Januária nunca mais eu fui. Naquele tempo a gente via Tom Mix, Buck Jones, naquele tempo era só camarada atirando nos outros. Os filmes era bom, mas era muita zueira. Ali ia muita gente fazer porquera (risos). Um dia o Mestre Minervino, marceneiro, foi no cinema. Ele saiu de lá, botou um revólver na cintura e atirou num compadre dele. Pegou também numa criança e numa senhora. Ai foi pra cadeia, ficou, ficou, e saiu muito tempo depois. Ele gostava de beber uma cachacinha. Aí quando ele saiu da cadeia, foi pra rua e comprou umas bananas, aqueles babanões. Colocou uma no bolso e saiu comendo a outra. O pessoal viu uma coisa na cintura dele e começou a falar "seu Minervino ta com o revolver!", e a policia foi atrás dele. Quando a polícia deu pra prender, ele colocou a mão no bolso, tirou a banana e apontou pra todo mundo. Os policial já tava tudo deitado e ele com a banana assim ó (risos). Num é que um soldadinho muito sabido pulou atrás dele, pegou o "revólver" e falou "aqui gente, isso é uma banana" (risos). Seu Minervino ficou até sem graça. Mas esse dia não teve quem não riu, moço.

Foto: André Fossati

Essa coisa de polícia é engraçado. Aquele era o tempo da burragem, moço. As patentes era tudo comprada. Os fazendeiros comprava patente de coronel, comprava patente de tenente. Tinha um que fez mal a uma pretinha. E ela deu parte dele. O coronel mandou prender. Quando esse homem apresentou a patente de coronel, o coronel de verdade pegou o papel e vrap-vrap. Rasgou tudinho. O homem gritou "Minha patente!!" e o coronel disse "Essa patente aqui tem mais valor em um cachorro do que em você" (risos). Ai ele fez o homem casar com a negrinha e danou a rir.

Naquele tempo era barca, aquelas barcas grandes, quase do tamanho de um vapor. Eles cobriam tudo com aquelas palhas de côco por causa da chuva. E ficavam seis homens de um lado e seis homens do outro lado com aquelas varonas compridas, para ir empurrando. E também tinha o leme, que movimentava a barca pra onde eles queria. E os homens remando. Quando eles pegava a vara, eles empurravam ela com o peito e feria. Então eles pegava a gordura do toucinho quente e colocava na ferida. Aquilo queima e depois adormece. Doía. Quando sarava, eles botava um pano e ia remando, tudo calejado. Eles se chamavam remeros. Não era só preto não, também tinha muito branco. Eles ganhavam muito bem, os remeros. Viajavam de Pirapora até Juazeiro. E voltavam. Subiam o rio no remo.

Esse rio São Francisco era um rio muito fundo. O pessoal vinha muito aqui pra pescar e vender. E tinha uma velha que chamava Januária, que morava na beira do rio. Ela comprava sal, querosene, na mão daqueles barqueiros e vendia pro povo. O povo morava no brejo do amparo. Pra você vir do brejo aqui em Januária você tem que vir com um bom armamento, porque tinha índio e onça. Naquele tempo era muito perigoso. E a velinha que morava lá comprava as coisas e ia pra dentro do brejo, pro povo comprar. O nome da velha passou pra cidade. Depois o rio foi descendo e o pessoal do brejo foi mudando pra cá. Mas ficou Januária. 

O texto foi tirado de uma entrevista com Irênio de Souza Santana, morador de Januária. 94 anos. Irênio é artesão. Com chapas de metal, ele produz cuscuzeiras e outros utensílios de cozinha.

Por Juliana Afonso

sábado, 7 de setembro de 2013

Educação para a cultura



Antes era tudo diferente. Todo mundo vivia no rio, brincava no rio, tomava banho no rio. O rio era o máximo. Agora o movimento é lá em cima. Os barzinhos também estão lá em cima, na beira do asfalto. Hoje, o asfalto é o máximo. Todo mundo vai para o barzinho olhar para o asfalto. E o rio, o velho rio, o Velho Chico, fica lá embaixo.

Foto: André Fossati

Enquanto Ludmila rememorava os tempos de infância, o salão se enchia de cores. Parecia que ela contava as lembranças desde a beira do rio, com os pés na água.

Das lembranças que povoam a memória de Ludmila, as melhores são as dos festejos da cidade. Congado, Batuque, São Gonçalo. "Eu participava muito quando era criança. Fui morar em Belo Horizonte aos 10 anos, mas sempre voltava nos feriados. Eu adorava", confirma. Tanto, que ela foi para Londres fazer um MBA na área da cultura. "As  pessoas pensam que eu faço essas coisas porque fui morar em Londres. Mas eu não passei a gostar porque estudei, eu estudei porque gostava", explica. Não por menos, ela se tornou a Secretária de Cultura da Cidade.

E Ludmila chegou querendo mudar as coisas. O projeto de Educação Patrimonial começa em setembro. A cadeia da cidade vai virar museu e escola de danças folclóricas. O Batuque, o Bumba-meu-boi e o São Gonçalo vão voltar. A banda centenária da cidade foi reativada.

Os problemas atuais não são de incentivo, são financeiros. "Antigamente os grupos tocavam, dançavam e formavam alunos gratuitamente. Mas agora, sem apoio, ninguém toca. Esse não deveria ser o objetivo principal. Cultura não combina com dinheiro." A luta de Ludmila é para que, com o tempo, a cultura volte a fazer parte de São Romão e a vontade de contribuir venha de maneira espontânea.

Foto: André Fossati

A secretária também conta com incentivo externo. Mas são poucos os projetos que vem de fora. O Cinema no Rio é o único na área de cinema. Esse ano o projeto levou os filmes Rio e Vou rifar meu coração, além do curta O fim do recreio. "O Cinema no Rio é muito interessante para as crianças. Inclusive o fato de ver filmes brasileiros, ao invés da programação estrangeira que tem na televisão", opina. Para Ludmila, os filmes brasileiros ajudam as crianças a compreenderem o contexto em que vivem e também a conhecerem uma nova forma de interagir com ele. Com o tempo, as crianças de São Romão também poderão contar suas histórias, com os pés na beira do rio.

Por Juliana Afonso

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O cinema e o espaço público

A expectativa das crianças só não estava maior que fila da pipoca. Com a clássica exéctativa prévia do cinema, o público da sessão de Ponto Chique foi um dos mais entusiasmados desde o início da expedição. As gostosas gargalhadas alternadas com olhares apreensivos e aliviados no desenrolar das tramas que ocupavam a telona encheu a principal praça da cidade de burburinho. A luz da projeção iluminava os rostos de muitas crianças,casais, famílias completas, com direito a pai, mãe, avô e cachorro, além de moradores antigos, alguns ouvindo suas próprias histórias em um documentário gravado no município.

Foto: André Fossati

A cena lembra outros tempos, onde os espaços públicos faziam mais sentido. Antigamente, as praças costumavam ser o ponto de encontro mais nobre de qualquer vilarejo, comunidade ou cidade. Era onde acontecia a missa, os discursos políticos, os debates, as festas, os desfiles, os namoros, as brincadeiras de roda,os protestos, os encontros ao acaso, os passeios despretensiosos de fim de tarde. Era, enfim, onde a coletividade ganhava vida,mais do que isso, era onde a própria vida costumava acontecer.

Em nossa passagem apressada pelas pitorescas comunidades do São Francisco é curioso perceber que mesmo em pequenos vilarejos do interior mineiro, os espaços públicos têm ficado cada dia mais esvaziados. Talvez porque seja mais fácil se encontrar na frente da tv ou bater papo na internet. Talvez seja a tal da correria da modernidade que não respeita nem o ritmo sereno do Velho Chico.

Foto: André Fossati

Durante as sessões do Cinema no Rio, ver a praça das cidades repletas de encontros, ao som das risadas das crianças correndo por todos os lados tem um gosto que vai além do gosto de ver a sétima arte se espalhando.Na verdade, a telona vira um pretexto para voltarmos para as praças, cumprimentar os conterrâneos, perguntar como vai a vida, sentir o cheiro da pipoca, ouvir as histórias de assombração dos mais velhos,flertar e conversar com os vendedores de balõescoloridos, sem pressa para voltar para assistir a novela. Até porque é inútil forçar os ritmos da vida. É tempo de aprender a dar o devido tempo às coisas.

Por Camila Fróis

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Viver sem água


Maria Antônia vive em uma casa de tijolos. Do lado de fora, as paredes brancas, descascadas, dividem o espaço com  os desenhos das crianças e as palavras azuis que anunciam os quitutes da Dona Maria. “Faço biscoito para vender, pão para vender. Faço um monte de coisa. Faço tapete, faço pano, quando aparece roupa para consertar, eu conserto. E assim eu vou levando”, conta.

 Foto: André Fossati

Maria Antônia vai levando. Assim como as outras 52 famílias que vivem no Assentamento 1º de Maio, a 10 quilometros de Cachoeira do Manteiga. A comunidade ali vive basicamente da agricultura, com o plantio de grãos e frutas. O problema é imaginar como uma comunidade que depende da terra pode viver sem água. O assentamento 1º de Maio tem seis anos. São seis anos sem água.

A terra em que hoje vivem essas 52 famílias era de um fazendeiro local. Como ela não era produtiva, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) comprou aquela terra para dar às famílias que quisessem trabalhar ali. “O pessoal ficou acampado na beira da estrada por um tempo. Isso porque o Incra deu um prazo para o fazendeiro desocupar esse espaço. Demorou seis meses”, explica Maria. Mesmo depois das casas organizadas, o problema da água permanece.

Todos os dias, um caminhão pipa contratado pelo exército vai até o assentamento. Cada pessoa tem direito a 20 litros de água. 20 litros para beber, tomar banho, lavar os utensílios e molhar as plantas. “No primeiro ano a gente quase não colheu, no segundo ano colhemos pouco, no terceiro colhemos bem. Ai ano passado perdemos tudo por causa do sol. É essa luta todo dia”, diz.

O Incra também não realizou a divisão dos lotes, o que dificulta o plantio de alimentos. Como ninguém sabe o espaço exato de cada um, comercializar os produtos e dividir o dinheiro arrecadado fica complicado. “Contratamos um agrimensor com o nosso dinheiro, mas agora o Incra disse que só pode dividir aqui em 2017”, lamenta. Conversando um pouco mais com dona Maria a gente percebe que o problema é ainda maior, já que a comunidade não tem o registro das terras: o registro que eles têm é provisório.

E complica ainda mais. A demarcação do assentamento vai até a beira do rio, mas só duas pessoas moram lá. “O Incra não deixou botar as casas perto do rio. Agora que a gente tem uma caixa d’água que acabou de ser reformada, não podemos usar porque não temos dinheiro para colocar uma tampa. Ontem mesmo eu fui em buritizeiro atrás de telha, mas ela é 6 mil reais. A gente não dá conta de pagar não”, explica. Muita gente já foi embora do assentamento.

Foto: André Fossati

O dilema do assentamento 1º de Maio foi o tema do documentário que o projeto Cinema no Rio exibiu em Cachoeira do Manteiga, distrito de Buritizeiro. Ainda que os habitantes saibam da existência do assentamento, poucos entendem a situação dos que vivem ali. Na cidade também foram exibidos os curtas Perto de casa e O fim do recreio, além dos longas Rio e Eu e meu guarda chuva.

A comunidade do assentamento não pode ir até Cachoeira do Manteiga prestigiar a sessão. Sempre que um grupo sai do local é preciso autorização prévia da prefeitura e hora marcada para voltar. A estrada que leva até as cidades mais próximas são perigosas e cheias de buraco. Dona Maria reza para que, no ano que vem, quando o projeto volte e a gente passe pelo assentamento, sua comunidade já tenha água e esteja plantando. "Eu pensava que era rápido ter um lugarzinho meu, viver do meu trabalho. Cheguei aqui e estou esperando até hoje, ne?", sorri.

Por Juliana Afonso