Mostrando postagens com marcador relatos antropológicos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador relatos antropológicos. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Água pega fogo



Por Amanda Horta
Finado o caos, nós já dentro da balsa, o filme de Cachoeira do Manteiga começa a surgir sobre o rio que marca a divisa dos dois municípios, através das histórias que já ouvimos sobre a Fazendo Pé do Morro, onde haveria um poço onde água pega fogo.

Chegando na cidade, o caso, que soa como uma contradição dos termos – pois que água, bem sei, sempre serviu para apagar as chamas daquilo que queima – me foi esclarecido, entre risos, por Sr Lili, antigo morador da cidade. Diz o lavrador que a água sai acompanhada de um gás, que mantém a chama acesa a despeito da umidade. Se muitos já disseram ser encanto, ou se já se atribuíram poderes fazendo fogo brotar da água com ares de passo de mágica, tudo hoje está esclarecido, e os moradores acham graça do estranho fenômeno da natureza.

Seu João Bem-te-vi, no alto de seus 79 anos, lembra-se bem dos tempos em que a ciência ainda não tapava os abismos da compreensão. Tempo de muito peixe no rio e poucas casas ali, quando Cachoeira do Manteiga nem venda tinha, e o comércio descia o rio de lancha, vindo de Pirapora. Seu filho, Zé Bem-te-vi, herdou o nome de pássaro e a rede de pesca, e busca no peixe parte de seu sustento, tal qual seu pai nos dias antigos.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A balsa



Por Amanda Horta
Deixar uma cidade traz sempre certa melancolia, como se criássemos uma sala no peito para então deixá-la vazia, no paradoxo entre o transbordar de lembrança e o poço sem fundo do desejo de mais.

A balsa que nos levaria de Ponto Chique à próxima cidade tardou quase uma hora e, na beira do rio, a espera e o silêncio foram se alargando enquanto o sol já não cravava mais o meio do dia.

Mas entre nós, a balsa, e o outro lado do rio, não tinha só o silêncio sagrado que memora a saudade: tinha também um caminhão, um gigante com tanta cerveja por cima, que foi entalar o nosso caminho.

Pesando a balsa pr’um lado, o tal caminhão cravou-se no chão, e não tinha homem, madeira ou macaco, que o fizesse entrar ou sair, e nossa balsa, grudada na margem de cá, perdeu de súbito a serventia de ponte.

E foi um “Deus-nos-acuda”: puxa o carro pra cá, pesa a balsa daqui, o dia caindo, todo mundo entalado olhando atônito o caminhão de cerveja quente – festa futura de alguém – fazer conosco este atraso de vida.

E o sol se esconde no chão, e surge a estrela Dalva, e depois de um monte de reza – e um tanto de esforço também – o caminhão solta os dentes da beira, e a balsa atravessa de novo em silêncio, deixando n’outra margem a balbúrdia da situação.

domingo, 5 de setembro de 2010

Pelos chifres



Por Amanda Horta
Em Ponto Chique é tempo de vaquejada. O evento que reúne um mundo de vaqueiros, vindos de vários cantos da região, faz sensação entre os moradores que, no Parque “Nô Rabelo” assistem em festa os bois, em disparada, serem tomados pelo rabo e jogados no chão. Quando a queda faz o bicho pôr a as patas no pro ar, o narrador confirma o ponto e a próxima dupla de vaqueiros já entra na pista para tentar repetir a proeza.

A lavoura e o gado compõe a vida de Ponto Chique, e entre ‘causos’ e ‘aboios’ se vai construindo o filme desta edição. O primeiro de nossos encontros é com Sebastião Gonçalves Rocha (47), o Rochinha. Criado por entre os bois de seu pai – com a lição de que aquilo que a vida não dá, se produz – Rochinha se fez vaqueiro de seus próprios bichos, e amigo fundo de seus animais. Seu cavalo, que escutava de perto nossa conversa, nos parecia sempre inquieto, e Rochinha nos explicava: “é saudade da que ele tem. Hoje eu o levo de volta pra casa”.

A procura por um berrante nos levou à casa de Sr. Raulino (59),que mesmo guardando o instrumento, disse que aboio se faz no grito, e que, quando moço, vaqueiro bom era o que pegava o boi pelos chifres. E assim, o nosso encontro navega os rios da memória, os velhos vaqueiros valentes, os bailes dançados outrora, e com as palavras de Sr. Raulino ainda latentes na cuca, nos despedimos de Ponto Chique, tranqüilos pela certeza do retorno breve.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Velhas canções



por Amanda Horta
Domingo cedo a estrada nos levou de Pirapora a Ibiaí, atrás de novas histórias. Os muitos encontros que se farão filme começam na feirinha da cidade, a poucos metros de onde o Cinema no Rio já brilhou a tela para os olhos de tanta gente e que, no dia 15 de setembro, voltará, mostrando outros cantos da tradição destes vizinhos do Rio São Francisco.

Dentre eles, está Sr. Eustáquio (58), que ainda menino já nadava pelas águas do Velho Chico. O ofício de peixe, nos conta, aprendera tal qual a arte de tecer redes: seus olhos atentos lhe serviram de único mestre.
Dali, visitamos Sr. Osair que, de viola e cavaquinho no braço, nos levou até a casa de Sr. Geraldo (44), exímio tocador de sanfona. Autodidata, Geraldo toca a sanfona de ouvido: quando bebê perdera a visão e a música, feito alimento, lhe tapava a fome do peito, acalentando as tristezas e embalando as alegrias da vida.

E do encontro destes dois músicos, bem frente à câmera se faz seresta, cercada por memórias que ganham vida nas palavras dos velhos amigos e nas notas das velhas canções.

Palmerinha




por Fernanda de Oliveira
Nas Pedras, como chamam os moradores locais se referindo a cidade Pedras de Maria da Cruz , nosso destino tinha passagem certa pelo Quilombo Palmerinha. Parceria de longa data pela constante relação com o quilombola Agmar, que conhecemos desde o Cinema no Rio São Francisco de 2006. De lá pra cá trocamos muitas correspondências, visitas e ajudas mútuas, na função pela cultura e pela manifestação da diversidade da gente.

Outro rumo certo foi o encontro com quatro senhorinhas, todas ancestrais de Palmerinha, na casa da sobrinha Neide, prima de Agmar, liderança da Pastoral Negras de Pedras de Maria da Cruz e do Reis das Pastorinhas, do qual fazem parte as quatro senhorinhas: Marcelina (78 anos), Maria (77 ), Isabel (74), e Maria da Conceição, a Bié (75). Todas mulheres cantadeiras e batalhadeiras nessa vida de tanta luta . Mudaram-se do quilombo há cerca de 20 a 50 anos, todas elas por necessidade de atenção especial à saúde. Coisa que mesmo na rua – como chamam a cidade – não é fácil conseguir. Quanto mais em Palmerinha, desassistida das autoridades que, tradicionalmente, atribuíam a todo lugar habitado por índios e por negros, um vazio demográfico. Estratégia de invisibilização dessa gente forte. Política social e econômica para restringir qualquer distribuição – de renda, de força, de acesso a auto-determinação.

Cantaram e cantaram suas lembranças de roda, de batuque e do Reis das Pastorinhas. Folgaram conosco, generosamente, oferecendo ao registro, seus encantos de gente velha e sabida que conhece e faz seu próprio tempo. Ficaram felizes pela sua participação no vídeo da cidade. Felizes conosco e com Agmar, o sobrinho que é “o único que considera a gente como gente”, reforçou dona Bié, na sua condição de idosa, negra e mulher, condições muito adversas nesse mundo reservado aos jovens, brancos, machos e proprietários.

Em Palmerinha fomos recebidas por Seu Dão, o João Gualberto (cerca de 74 anos), e seu irmão Domingos (76). Desde de 2007, quando conhecemos Seu Dão, ele manifestara muita vontade de participar de uma filmagem para “falar assim do tempo de antigamente”, das “ profissias dos antigos”, dos encantados d’água... Lavrador e pescador, muitas vezes canoeiro, Seu Dão conhece do rio, um tanto. De até encontro com o caboclo d’água, ele mesmo na sua feia figura: “um pretinho, baixotinho, esquisito, mal encarado, que queria virar meu barco e me trazer um prejuízo”.

Da voz das profissia, Seu Dão enfatizou aquela que dizia de um tempo em que surgiria uma cobra grande, enorme e preta, sem começo nem fim, que devastaria o mundo enchendo-o de coisa ruim: essa cobra devia de ser o asfalto. A rua preta, escura, por onde passa tanta coisa boa, mas tanto mais coisa malina, veneno de alimento, bandido ferino, doença, impaciência, desvario. “Cobra que a gente não sabe onde começa nem onde termina”. As professias.

Dessas histórias, a comadre Cidelcina (66), sabia um tanto e quis contar pra gente. No princípio resistiu a filmagem, pois que não se sentia a vontade em ser gravada para sempre. Mas foi se envolvendo na conversa, na sedução de vincular-se a gente alheia, de fora e longe. “De onde eu vim, não sei. Porque eu não perguntei. Só sei pra onde eu vou.” Contou da sua vida, a Cidelcina. Da filha nascida que foi sua boneca, uma vez que tornou-se mãe bem jovem. E que, de criança, a mãe lhe queimara as bonecas tão estimadas, porque julgava que o brinquedo lhe desviava da obrigação. Brincou de boneca até os 14 anos. Bordava ela mesma toda a roupinha das bonecas.

“Hoje minha filha diz que eu já era. Que sou velha. A gente é da era. Mas sabe mais do que esses jovens de hoje, Que sabem das letras mas não sabem da vida. Eu sou da era, e sei mais do que você. Penso melhor do que muitos estudados. Não se defende com a leitura. ”

Teve também senhor Feliciano (76), um rezador de qualidade, pai de 22 filhos, rimador,poeta e filósofo popular. “A brincadeira, naquela época, não tinha decepção”. Aquela época, diz-se da juventude de Feliciano, quando o divertimento maior era “quebrar as cadeiras das meninas” na dança de um forró arroxado. “Leitura, eu não tenho. Mas sou respeitador”. Desde criança, Feliciano assuntava a reza dos mais velhos, ouvia tudo com atenção e sentia que era aquele um seu destino. Além dos tantos outros fazeres que hoje desfia pela sua memória, olhando à distância, sua obra desenvolvida pela vivência curtida. ‘Aprendi com meu próprio assunto. Se você não assunta, você não aprende, não”.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

“É no cinema? Eu quero ver!”


Por Fernanda de Oliveira

Cidade das praças coloridas, lugares públicos encantados com as esculturas cravadas no chão, representações de bichos nativos e encantes do Rio. Um caboclo d’água, uma arinhanha, uma anta, uma onça, uma mãe d’água: tornaram-se todos encantados, feitos agora monumento, pela raridade de sua presença no ambiente atual, poluído e alterado.

Nas ruas de Itacarambi, Minas Gerais, sob sol quente, retratamos o cotidiano citadino: um vendedor de melancia, um jardineiro, uma menina de bicicleta, outra bicicleta e mais outra. Um senhor de 110 anos de idade, ativo de memórias, tomando um fresco na porta de casa. Maria, catadora de material reciclável – entre plástico e metais. Alcança de R$3,00 a R$5,00 por dia, rondando a cidade com sua carrocinha de recuperar o imprestável. Contou que na juventude, havia migrado para São Paulo, trabalhando muitos anos como doméstica. Sem alcançar o devido progresso, preferiu retornar à terra de nascida. Ao menos, um lugar que é seu. Pode senti-lo a cada passo no chão firme de poeira e vento.

Visitamos uma grande fábrica que emprega muita gente da cidade e cuja atuação promove significativo impacto econômico na dinâmica local. Os funcionários são homens e mulheres, em grande parte jovens, deslocados das atividades do campo, para o setor industrial: tudo muito rápido e constante. Longa duração nervosa das máquinas ferventes, aquecendo a produção.

Ficamos sabendo do Reis das Pastorinhas, tipo de reisado cantado e dançado por senhoras e senhoras de muita idade. Membros de uma Associação da Terceira Idade, devotos dos santos católicos e de Jesus Cristo, Senhor. Tocam sanfona, pandeiro e bumbo, e representam os pastores do campo, figuras cheias de sentido para conhecedores do Evangélio Sagrado.

Contaram também da Folia do Reis do Boi Baiano. Boi baiano, porque trazido da Bahia. Introduzido em Itacarambi por uma chegante antiga, a Sá Martinha, emigrada de Remanso (BA). Semelhante ao boi bumbá, é brincadeira dançada e cantada por tantos personagens encantados: boi, mulinha, Mateus, Catirina, Zé Caipora. Sai sempre pelo mês de Janeiro, durante cerca de 20 dias, em cortejo folião, pela cidade a dentro. A mestra agora é Maria do Carmo, que nos descreveu o sistema do Boi, e nos lembrou de muitas outras brincadeiras, brincadas pelos negros do antigamente: lundu, cana- verde, batuque, contradança... Tantas importâncias sociais cujo rendimento, coletivo, é prazer e alegria.

“Ô minha caninha verde
Ô minha verde caninha
Eu não vou na sua casa
Pra você não vir na minha”

Rompendo as ruas de Itacarambi, fomos chamados pelo som frenético de uma Fanfarra da Escola Municipal Carmem Maria Andrade Nogueira. Cerca de 50 jovens de ensino médio tocando percussões e metais vibrantes, preparando-se para o tradicional desfile da celebração civil do Sete de Setembro. Ao verem a câmera atenciosa ao seu movimento organizado, os jovens ficaram completamente envolvidos, e reanimaram sua performance com entusiasmo pela possibilidade de aparecerem no vídeo da cidade.
- “ Vai passar aonde, isso?”
- “É no cinema? Eu quero ver!”

terça-feira, 31 de agosto de 2010

A questão quilombola no Brasil


A antropóloga Fernanda de Oliveira acompanhou a segunda etapa de pré-produção do projeto Cinema no Rio São Francisco. Aqui ela deixa algumas de suas anotações e impressões.

Cadê o rio que está ali? A empresa come
A represa come
A bruteza come
O Homem (des)come...

Matias Cardoso

Na porta do seu bar, buscamos senhor Francisco. Ele sabe o rumo do Quilombo da Lapinha, lugar pretendido como tema do vídeo desse ano, em Matias Cardoso. Vídeo que vai ser exibido na sessão de cinema, no mês de setembro, na sexta edição do Cinema no Rio São Francisco.

Conta do velho Matias, que nomeia a cidade, do conseguinte Januário Cardoso, “do povo escravo que construiu tudo isso aqui”. Conta do Quilombo da Lapinha, de cujo grupo familiar, ele mesmo também faz parte, apesar de não aderir à luta pela terra que o governo ainda não tem garantido ao seu povo. Até onde ele alcança – na memória e na vivência - os quilombolas sofrem bastante nesse território mal dividido que é a questão agrária brasileira, e o povo da Lapinha vive na terra há muitas gerações, trabalhando em lavoura de vazante e encharcado, batalhando uma sobra na vida pro sossegar da família em crescimento.



Quilombo da Lapinha

A poucos quilômetros da sede do município, o Quilombo da Lapinha conquistou a certificação pela Fundação Cultural Palmares, como Comunidade Remanescente de Quilombo, em 2006. Desde antes vêm lutando pela terra, ocupada tradicionalmente, e tradicionalmente ameaçada pela cobiça dos únicos sujeitos reconhecidos e promovidos pela também tradicional política econômica nacional: os proprietários, em sua maioria brancos; em sua maioria poucos; donos de muito mais terra do que podem semear.

Fomos recebidos por Antônio Fernandes – o Buqueirão – e Maria Aparecida – a Dinda - que breve reuniram poucas famílias presentes àquela hora do dia – hora do trabalho na terra, na várzea e na ilha.

Seria angustiante se não fosse ainda mais bonito ver a força desse povo “corajudo” conforme se auto qualificou dona Dorotida, anciã e benzendeira da comunidade. Povo corajudo e organizado no sentido da luta pelos seus direitos profetizados na Constituição Brasileira.
O artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 (ADCT) estabeleceu que:
“Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”

Pra mostrar por quê vive e a que se dedica essa gente alerta, Dinda investiu numa demonstração do Batuque – divertimento comum entre afrodescendentes rurais, marcado por toque de caixas e um samba em roda – fazendo folia e nos fazendo felizes em poder registrar tanta força vital, quilombola.

O Batuque é “de geração dos bisavôs”, informou o Antônio. Através desse tambor “é que dá força pra gente, na luta”, reforçou a Dinda.
Cercados por reservas ambientais e reservas capitais de proprietários privilegiados pelo esquema nacional, o povo da Lapinha segue na luta, contando já com apoio da Universidade Federal de Montes Claros, da Pastoral da Terra e do Direitos Humanos, segundo Antõnio.

“Nós somos Quilombo
Nós somos pra lutar
Sou filha do Quilombo
Que sabe Batucar”

Prossegue – rompendo estradas - essa força do Quilombo da Lapinha...E para quem se interessar mais pela questão quilombola no Brasil, alguns sítios eletrônicos onde encontrar informações importantes:
www.koinonia.org.br/oq/
www.cedefes.org.br/
www.cpisp.org.br