terça-feira, 31 de agosto de 2010

A questão quilombola no Brasil


A antropóloga Fernanda de Oliveira acompanhou a segunda etapa de pré-produção do projeto Cinema no Rio São Francisco. Aqui ela deixa algumas de suas anotações e impressões.

Cadê o rio que está ali? A empresa come
A represa come
A bruteza come
O Homem (des)come...

Matias Cardoso

Na porta do seu bar, buscamos senhor Francisco. Ele sabe o rumo do Quilombo da Lapinha, lugar pretendido como tema do vídeo desse ano, em Matias Cardoso. Vídeo que vai ser exibido na sessão de cinema, no mês de setembro, na sexta edição do Cinema no Rio São Francisco.

Conta do velho Matias, que nomeia a cidade, do conseguinte Januário Cardoso, “do povo escravo que construiu tudo isso aqui”. Conta do Quilombo da Lapinha, de cujo grupo familiar, ele mesmo também faz parte, apesar de não aderir à luta pela terra que o governo ainda não tem garantido ao seu povo. Até onde ele alcança – na memória e na vivência - os quilombolas sofrem bastante nesse território mal dividido que é a questão agrária brasileira, e o povo da Lapinha vive na terra há muitas gerações, trabalhando em lavoura de vazante e encharcado, batalhando uma sobra na vida pro sossegar da família em crescimento.



Quilombo da Lapinha

A poucos quilômetros da sede do município, o Quilombo da Lapinha conquistou a certificação pela Fundação Cultural Palmares, como Comunidade Remanescente de Quilombo, em 2006. Desde antes vêm lutando pela terra, ocupada tradicionalmente, e tradicionalmente ameaçada pela cobiça dos únicos sujeitos reconhecidos e promovidos pela também tradicional política econômica nacional: os proprietários, em sua maioria brancos; em sua maioria poucos; donos de muito mais terra do que podem semear.

Fomos recebidos por Antônio Fernandes – o Buqueirão – e Maria Aparecida – a Dinda - que breve reuniram poucas famílias presentes àquela hora do dia – hora do trabalho na terra, na várzea e na ilha.

Seria angustiante se não fosse ainda mais bonito ver a força desse povo “corajudo” conforme se auto qualificou dona Dorotida, anciã e benzendeira da comunidade. Povo corajudo e organizado no sentido da luta pelos seus direitos profetizados na Constituição Brasileira.
O artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 (ADCT) estabeleceu que:
“Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”

Pra mostrar por quê vive e a que se dedica essa gente alerta, Dinda investiu numa demonstração do Batuque – divertimento comum entre afrodescendentes rurais, marcado por toque de caixas e um samba em roda – fazendo folia e nos fazendo felizes em poder registrar tanta força vital, quilombola.

O Batuque é “de geração dos bisavôs”, informou o Antônio. Através desse tambor “é que dá força pra gente, na luta”, reforçou a Dinda.
Cercados por reservas ambientais e reservas capitais de proprietários privilegiados pelo esquema nacional, o povo da Lapinha segue na luta, contando já com apoio da Universidade Federal de Montes Claros, da Pastoral da Terra e do Direitos Humanos, segundo Antõnio.

“Nós somos Quilombo
Nós somos pra lutar
Sou filha do Quilombo
Que sabe Batucar”

Prossegue – rompendo estradas - essa força do Quilombo da Lapinha...E para quem se interessar mais pela questão quilombola no Brasil, alguns sítios eletrônicos onde encontrar informações importantes:
www.koinonia.org.br/oq/
www.cedefes.org.br/
www.cpisp.org.br

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Tocaia



“Corre! Esconde lá no meio do mato. A gente não sabe quem está vindo naquele caminhão”, gritou Inácio. Era noite e só a luz do farol para iluminar aquela escuridão e a lanterninha do meu celular também, que eu acendi antes de sair correndo para o meio do mato. Estratégia fracassada, fui descobrir logo depois, já que se a idéia era me esconder, aquele feixe de luz indicava claramente onde eu estava. Saindo de Malhada na Bahia para Manga já em Minas Gerais, havia muitos caminhos possíveis. Pegar asfalto, ir pela estrada de chão, uma parte de chão e outra de asfalto. Escolhemos seguir pela estrada de chão e cortar caminho. A poeira era tanta que foi inevitável. O carro caiu em um buraco e ficamos no meio da estrada, bem perto de Manga.

As tentativas para desatolar o carro foram inúmeras. Tirar a areia debaixo do carro, fazer uma alavanca com um pedaço de pau para tentar tirar a roda da frente, procurar pedra para colocar em baixo da roda. Tentei controlar meu ceticismo. Nunca vi essas estratégias funcionarem na prática. Eu não entendo nada de carro, mas já previa que nada disso iria dar certo. Fiquei procurando pedra, no escuro, observando as estrelas e as constelações que naquela escuridão toda estavam bem nítidas. Com tantas estrelas aparecendo, acabei tendo dificuldades em identificar a constelação de escorpião. Minha letargia foi interrompida com os gritos do Inácio. Eu era a única mulher na equipe e deveria me esconder, já que ele tentaria ajuda com o caminhão que apareceu repentinamente naquela estrada deserta.

Eu saí correndo com minha lanterinha de celular. Inácio, Fernando e Alex ficaram esperando. Estranhamente o caminhão parou. Inácio sem paciência foi em direção deles. Só ouvi a discussão. Amarraram uma corda para puxar o carro, mas a corda rebentou. Como não havia passagem para o caminhão, o jeito era dar carona para Inácio até Manga para ele pedir um guincho.

Enfim, pude voltar para perto do carro e continuei a identificar as poucas constelações que aprendi há muito tempo atrás. Preferi não me preocupar muito com a situação e me preparar para, quem sabe, passar a noite ali na poeira mesmo. Alex parecia tenso, mas também acabava de sair de sua região para seguir para Belo Horizonte. Devia, naquele momento, estar pensando na besteira que cometera em ir para Minas com o pessoal do cinema.

Deixaram Inácio na entrada da cidade. Ele achou um taxista que se prontificou em ajudar. “Eu sou do Projeto Cinema no Rio São Francisco. Você conhece?”, perguntou Inácio. “Claro. Já levei um pessoal no aeroporto de Montes Claros, acho que o ano passado", respondeu. Inácio se lembrou na hora, ele lavara seus amigos que desceram um trecho do São Francisco dentro do barco. “Vem cá que eu arrumo um guincho para você agora”, respondeu o taxista. O dono do guincho era de Janaúba. Inácio foi a viagem toda citando nomes de conhecidos da cidade e dos lugares que já havia feito seção de cinema. O dono do guincho conhecia todo mundo também. Ficaram amigos.

Ligamos o som do carro, enquanto esperávamos Inácio voltar. Alex perguntou se não tinha um reggae. Eu queria ouvir rock. Para agradar todo mundo, Fernando colocou Bob Marley. Conversávamos sobre as angústias de quem acabava de sair da faculdade. Fernando tem mais tempo de formado, mesmo assim com suas preocupações. Alex ficava só olhando, aquelas aflições não faziam muito sentido para ele que preferiu não seguir adiante com os estudos.

No auge da conversa, chegou Inácio e seu novos companheiros. O taxista era entendido de carro. Rapidinho achou o lugar e o nó preciso para amarrar no guincho. Uma pena foi vê-lo sujar a roupa que estava tão limpa. Ele olhou pra gente e começou a rir. “Vocês tão parecendo Tatu”. A gente não achou muita graça... nos esforçamos tanto tentando tirar aquele carro do buraco, coisa que ele resolveu em menos de cinco minutos. Na hora de ir embora, eles não quiseram cobrar nem um centavo. “Como assim vocês não vão cobrar?”, perguntou Inácio “Vocês são do Projeto Cinema no Rio, não precisam pagar nada”, respondeu.

Inácio pagou uma cerveja para eles. Depois comentou comigo sobre o medo de que o serviço saísse caro. Afinal, ele teve que tirar o pessoal de suas casas. Mas eles pareciam mesmo muito felizes em ajudar. E Inácio muito contente pelo reconhecimento que o projeto tem nas cidades por onde passa. O taxista e o dono do guincho beberam num bar à margem do São Francisco. O pessoal do caminhão que deu carona para Inácio estava lá também. “Por que você saiu correndo com aquela lanterna para o meio do mato?” me perguntaram. A gente quase morreu de susto, achei que estavam armando uma tocaia. Por pouco não viramos o caminhão e saímos correndo”, comentaram. Ainda bem que não fizeram isso, pensei. Por pouco minha lanterninha não estraga tudo!

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Quilombo renascentista



A madeira tá lá bruta, inóspita, jogada no campo ou na beira do rio. Aquele pedaço de emburana é lapidado até se transformar numa obra de arte. O artista plástico e pintor, Joasir Pereira, tem boa imaginação. “Eu pego a madeira e vou vendo o que dá pra fazer”, explica. Nesse caso, é o próprio material que vai indicando no que quer se transformar. Aproveitando o desenho, o ritmo, as curvas, ele chega na forma final.

Durante a filmagem no Quilombo Tomé Nunes, distrito de Malhada na Bahia, foi impossível não se encantar pelo trabalho do artista Joasir. Ali, naquela pequena comunidade, ele se inspira e dá forma a natureza. Ele já pintou o rio São Francisco, os pescadores e as mulheres negras do quilombo. Essa obra em especial, gigante, talhada na emburana retrata uma negra. A perfeição é tamanha que é quase impossível imaginar que a escultura foi feita em madeira.

Mesmo retratando temáticas bem próximas de sua comunidade, o olho de Joasir brilha mesmo é quando fala do renascimento. “O quadro que mais me marcou foi da renascença. A minha maior inspiração é Michelangelo que é o mestre da anatomia”, nos explica. Depois de falar das sombras, do movimento, da harmonia típica desse período, ele pega uma tela gigante e começa a desenrolar no chão. A Donzela foi feita em homenagem ao pintor holandês Paul Rubens. “Essa é uma tela renascentista. Colocavam tons vermelhos e azuis por que era requinte e usavam essas gordinhas como modelo”, explica.

Joasir não teve mestre aprendeu tudo com os livros . Hoje ele mora no quilombo, mas já esteve em Embu das artes em São Paulo. Por lá, conheceu e conviveu com vários artistas. “Eu conheci um pintor grego e aprendi a tomar vinho seco”, brinca. De vez em quando ele vende uns quadros em Carinhanha. É artista conhecido na região.


quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Para onde soprar o vento



“Qual a cultura de Barra do Parateca?” “Cultura? Como assim?”, respondeu o amigo. “É essas coisas, Cavalhada. Sei lá, o esporte”. “Ah! Entendi... esporte... aqui tem muita coisa: cavalhada e jogo de futebol . Durante a pre- produção do projeto cinema no rio, encontramos Alex de 22 anos logo na entrada do distrito. Da janela do carro: Inácio grita: “Você sabe onde a Paixão mora?”. Alex responde: “Eu vou lá com vocês”. Decidido e sem receio dos forasteiros munidos de um Fiat cheio de equipamento de filmagem, Alex nos acompanhou. Mais que indicar caminhos, Inácio fez logo a proposta. “Trabalha com a gente hoje. Vou te ensinar a fazer o som do filme”. Um pouco assustado com aquele microfone gigante, rapidinho foi pegando o jeito. “Tá baixo, microfone vazando, vamos fazer um travelling agora. Foram vários termos estranhos, mas Alex não perguntou o significado de nenhum. Foi aprendendo com a experiência.


Filmando um buteco da cidade, Inácio propôs outro desafio: “Agora é você quem vai entrevistar os seus amigos”, disse para Alex. Com aquela risadinha ele respondeu: “Mas moço eu nunca fiz isso não”. Inácio fingiu que não ouviu e ficou olhando até Alex tomar alguma atitude. Dois jovens tomavam cerveja no bar e Alex começou a entrevista falando de cultura, coisa tão complexa.

Mudando os rumos

Barra do Parateca é comunidade quilombola reconhecida pela Fundação Palmares desde 2005. Alguns continuam lutando pelos seus direitos. Lutando literalmente com os fazendeiros pela demarcação das propriedades do quilombo. Tentaram deter a posse de terra pelos quilombolas. Ônibus queimado na chegada do distrito, a primeira marca de retaliação da comunidade. Mas muita gente evita falar do assunto, principalmente os idosos que quando perguntados sobre a situação: “Sei não moço, diz que aqui tem um tal de quilombo”.

Alex também parece não compreender muito bem o dilema por que passa a comunidade. Inquieto, diz querer viver em outro lugar. Nesse pequeno distrito, a vida corre lenta. Os cachorros dormem no meio da rua e nem se levantam com o carro que passa. As crianças são curiosas, as casas ficam coladinhas uma na outra. O chão é de terra batida. Alex já morou uns tempos em São Paulo e diz ter adorado a experiência. “Quer trabalhar na equipe do projeto Cinema no rio. Ir para Belo Horizonte e depois seguir o São Francisco?”, perguntou Inácio. “Vai lá e pode arrumar as malas”. “Minhas malas já estão prontas”, respondeu Alex. E assim, foi. Alex juntou as malas e viajou com a gente. Filmou outras cidades e seguiu para Belo Horizonte trabalhar com a equipe da técnica.

Alex não falava muito. Mas também, ainda não teve tempo de digerir tanta mudança. Ele que estava de partida para Bom Jesus da Lapa, teve que mudar os rumos. Viver um pouco dos bastidores e da pesada rotina que é brincar de fazer cinema.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Rio em melodia




Dó-Ré-Mi-Fá. O viajante ensinou-lhe algumas posições no violão. Desses acordes simples, João Batista ganha inspiração para fazer arranjos mais complexos que dão a harmonia de suas próprias composições. Ele mora na pequena cidade de Angico, uma comunidade na beira do São Francisco. João mantém quase sempre a cabeça baixa e custa a olhar as pessoas nos olhos. Calejado nem tanto pela pesca ou labuta nas ilhas na beira do Velho Chico, mas sim pelo não reconhecimento e pela falta de oportunidade em mostrar a sua arte. Num lugar onde a seca de cultura e possibilidades parece superar a seca do rio, João com seu olhar cabisbaixo acaba perdendo um pouco da esperança.


Durante a pré-produção em Angico, insisti em filmar João Batista. Eu já havia escutado suas músicas na passagem do projeto Cinema no rio no ano anterior e acreditava que ele deveria fazer parte do filme da cidade. "Foi ela que me descobriu", disse João Batista se referindo ao fato de eu ter levado Inácio para filmá-lo. Confesso ter ficado constrangida com essa frase e principalmente por saber das expectativas que uma câmera pode criar nas pessoas.


Logo depois aparece uma criança de olhar gracioso e com uma esperteza muito além de sua idade. É a filha mais nova de João Batista. Imediatamente ela se senta ao lado do pai e começa a cantar a música que ele ensinou. João pede desculpas por não ter ensaiado antes da filmagem. O pai corrige a filha que trocou algumas palavras da letra da musica de João. "Quem sabe ela não tem a oportunidade que eu não tive", disse.


sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Casa da careta



Um homem de bigode e bocas exageradas está lá no topo de uma construção antiga. Os traços têm um quê de deboche. As linhas não me fazem lembrar da arquitetura típica de uns 200 anos atrás. Como uma caricatura exagerada, essa construção parece uma aberração bem no centro de Carinhanha na Bahia. Do outro lado, outro prédio da mesma época, com linhas clássicas e anjos que nos remetem ao barroco. O motivo desse contraste? Bom, para isso também temos história.

Dois artistas disputavam quem era o mais talentoso. Com uma cortina que cobria o processo de feitura dos dois prédios, a cidade aguardava quem seria o melhor. No dia da inauguração das duas construções, duas bandas, cada qual representando um artista, se preparava para tocar. O artista português mostrou sua obra: dois anjos ornavam com detalhes bem barrocos a fachada da construção. Quando foi a vez do espanhol, uma surpresa. Tava lá entalhado no alto da segunda construção o rosto do artista português. Com bigode, boca desproporcional e olhos arregalados, um retrato distorcido do rival. Dois peixes e duas aves terminavam o ornamento. Como o senso de humor naquela época não era o mesmo, o português desapareceu e nunca mais voltou. Pensando bem, até que as pessoas se divertiram já que o espanhol foi eleito o melhor artista da região.

Se a rivalidade naquela época se refletia em dualidades, hoje parece que isso se revela no descontentamento das pessoas da cidade com a política de um modo geral. O que acaba gerando uma não valorização das manifestações, cultura e patrimônio local. Carol de 18 anos é cantora, compositora dona de uma voz que se desloca do grave para o agudo sem nenhuma distorção. Se apresenta às vezes, mas ainda tímida tenta buscar o seu lugar.

O grupo de teatro da cidade busca espaço, estrutura, aplausos e reconhecimento dos moradores de Carinhanha. Se nas outras cidades da região o grupo é aclamado, na sua terra as coisas são diferentes. Mesmo assim, não negam suas raízes. Cícero é o diretor e autor das peças e busca inspiração na sua cidade, nos seus dilemas, na vida do interior. Enquanto Inácio aconselha o grupo e diz, durante a gravação, que essas dificuldades estão em todo lugar, Dona Ana nascida em 1923 aparece na porta e diz baixinho: “Ninguém é profeta na sua terra”. De mansinho ela virou a personagem principal do filme. Brincou com o microfone. “Cês num tão gravando essas bobagens não”, disse. Cantou cantigas, recitou poema e deixou todo mundo impressionado. Incusive o pessoal do teatro que sempre ensaiava na casa de D. Ana, mas que nunca parou para ouvir suas histórias. Ás vezes é na frente da câmera mesmo que a gente se reconhece.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Ponto. Linha_Ponto.



Aqui tinha muito barulho. Capitão Alkimim era arque inimigo de capitão Duke. Numa terra sem lei dividida pela disputa, a bala era quem falava mais alto. Mas tinha um lugar sagrado, quem corresse pra lá estava protegido. A igreja? Não o telégrafo. O ponto linha ponto do código Morse era o melhor barulho a ser ouvido. O que metia medo mesmo era o bang bang da disputa dos capitães. Durante a pré-produção em Carinhanha na Bahia foi preciso recorrer ao passado e sentir aquele clima dos filmes de cangaço. Seu Poliondas e Seu Totó foram os responsáveis por esse mergulho. Longa estrada de vivência! A memória pode até falhar, mas seu Totó se lembra perfeitamente do código Morse do telegráfo e seu Poliondas do barulho e da richa entre Alkimim e Duke.

Entre o contar e recontar, o relembrar e o esquecer que fomos captando um pouco da alma da cidade, as imagens de uma memória que falha. Enquanto Seu Totó se preocupava com a veracidade dos causos que ouviu dos pais, e que não escondeu a tentativa de apurar melhor toda informação com seus colegas mais velhos, a gente queria era ouvir histórias. Num trabalho quase jornalístico documental e por que não também de ficção a última coisa que interessava era chegar na fonte mais credível.


Duke fechou o cerco. Capitão Alkimim não tinha para onde fugir. Sua mulher já havia preparado o veneno, iria tomá-lo caso o marido morresse. Foi quando a maçonaria e o governo interviram e levaram os dois para Bom Jesus da Lapa. Foi na época dos jagunços que Duke se juntou a Getúlio Vargas e retomou o domínio de Carinhanha.

Muito tempo se passou, mas a cidade ainda tem guardada a lembrança das balas na parede. Ás vezes sinto que as pessoas ainda se escondem em suas casas e que o vazio das ruas tem a sua própria significação. Demorou pra eu entender o que era esse tal barulho, mas sem jeito de perguntar fui descobrindo o sentido da palavra. Seu Poliondas viveu alguns barulhos, ou melhor dizendo alguns tiroteios entre os dois rivais. Mais do que no imaginário da cidade essa rivalidade se revela também na arquitetura. Inácio queria por que queria “costurar” a narrativa do filme da cidade com a casa da careta. “Já sei, descobri o que vamos fazer”, empolgou.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Brincando com palavras



Caminhando na praça de Andrequicé, chegou um menino de seis anos: “eu sou neto do Manuelzão”. Eu até achei que era brincadeira, mas ele começou a falar um trecho do livro Manuelzão e Miguilim. Percebendo a naturalidade dele para contar histórias, chamei Inácio para gravar aquelas cenas. Aparentemente tímida, a amiguinha dele, Eduarda de Oliveira, se aproximou e concordou em gravar também. Com o passar do tempo a timidez perante a câmera, se transformou em uma indescritível naturalidade. “Marco Túlio não é do grupo de contadores não, mas ele escuta e aprende. Quando ele sai da creche eu vou contando o que aprendo”, explica Eduarda.

“Você já se imaginou um dia na tela de cinema?”, perguntou Inácio. “Já sim. Eu imaginei que tava cheio de gente e eu aparecendo na tela fazendo teatro”, respondeu Eduarda. E sem medo, ela fala dos seus colegas de sala. “Ler é quando você lê um monte de coisa. Você só sabe algumas palavrinhas”, Eduarda comenta sobre o aprendizado de Marco Túlio na escola. Se o neto de Manuelzão tem dificuldades com as letras , ele compensa tudo isso na espontaneidade em que conta suas histórias.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Grande sertão mineiro


“Fernando! Corre aqui”, gritou Inácio. Se em Felixlândia tivemos dificuldades para encontrar os personagens, mal descemos do carro e Inácio já teve uma ideia. De longe, viu uma charrete e o entregador de leite. Teve o lampejo de acompanhá-lo para pegar o depoimento dos compradores de leite. Fernando e a câmera seguiram dentro da charrete para captar um pouquinho da trajetória do leiteiro que ama sua profissão e, mesmo tendo propriedades, se orgulha em abastecer a região com leite e outras verduras frescas. Essa rotina marca o pequeno vilarejo que guarda a história do importante personagem real das obras de Guiarães Rosa: Manuel Nardi, o Manuelzão.

Zito, Bindoia, Zé Leite... Quase todo mundo da cidade conhece os companheiros que tocaram boiada junto com Manuelzão, mas sobre o cidadão mais famoso de Andrequicé as opiniões são diferentes. “Ele era esquisito, bruto.Quando foi para ele morrer, disse que não queria ser enterrado no meio de gente. Ficou no canto do cemitério”, conta Maria Amaral para as câmeras.

Uma imagem chamava a atenção: a casa bem antiga logo no início da cidade. Dona Olga na janela. Se em Felixlândia as pessoas pareciam mais receosas com a câmera e dificilmente autorizavam a gravação, em Andrequicé, pareciam acostumadas com as lentes. Dona Olga nos convidou para entrar e gentilmente aceitou ser entrevistada para o filme da cidade. Talvez isso não tenha ficado muito claro - a maioria das pessoas entendiam que as filmagens eram para passar na televisão e não no cinema na praça.

Com riqueza de detalhes Dona Olga nos contou da vida de antigamente, das festas e do carnaval. Algumas imagens ficaram na cabeça. A primeira é imaginar que a mãe de Olga se casou tão nova que volta e meia seu marido a pegava brincando de boneca. Outra é tentar visualizar a conversa de Manuelzão e o professor Apolo Heringer, da Faculdade de Medicina da UFMG. “Por que projeto Rio das Velhas e não Manuelzão? Quando Apolo saiu, ele comentou comigo que agora poderia morrer feliz. Era assim que ele queria ser lembrado”, nos conta Dona Olga - o projeto de revitalização do rio das Velhas leva o nome do vaqueiro.

Depois fomos coversar com a filha de Manuelzão, Maria Nardi. Ela não escondeu o desconforto e a timidez perante as câmeras e as lembranças de seu pai pareciam estar se esvaindo. Sobre a fama de Manuelzão, comenta: “Era um simples do sertão, sem estudo, nem nada. Mas sou feliz com o reconhecimento dele. Acho que isso até o ajudou a viver mais.”




segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O que é o projeto "Cinema no Rio São Francisco"

O Cinema no Rio é um projeto que exibe filmes nacionais em comunidades ribeirinhas do rio São Francisco, desde 2004. Nesses quatro anos de existência, já levou o cinema a municípios dos estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.
Além de visar a democratização do cinema, o projeto possui uma equipe que se distribui de maneira a possibilitar sua interação com as pessoas das cidades.
As exibições de filmes em 35mm são antecedidas de um vídeo feito em torno de depoimentos e impressões dos moradores da comunidade onde está acontecendo a sessão.
O Cinema no Rio também assume uma função de pesquisa. A equipe do projeto faz um levantamento das manifestações artísticas e culturais de cada comunidade visitada. São registradas as peculiaridades e expressões locais. Uma das frentes de pesquisa, registra imagens das comunidades, seu espaço e seus moradores através da fotografia. Ao mesmo tempo, é realizado um levantamento de fotos antigas pertencentes aos próprios moradores para a composição do acervo do projeto. Há também o interesse em efetuar um estudo específico da culinária típica da população ribeirinha. A pesquisa antropológica, por sua vez, tem o papel de fazer um contato inicial com a população para ouvir suas histórias.
O Projeto também propõe uma Oficina: Imagem em Movimento. Esta explica o princípio básico do cinema através da confecção de dois brinquedos ópticos o Traumatrópio e o Fkip-book.
O Cinema no Rio São Francisco dissemina a linguagem cinematográfica, em especial a produção brasileira, além do que, revela os mistérios do cinema em segmentos populacionais carentes de informação, cultura e lazer de qualidade.


visite o site: www.cinemanorio.com.br

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Personagens da vida real












Os meninos brincavam em cima da charrete. Suas sombras eram projetadas na parede. Num jogo de projeção e de encantamento encontramos talvez a melhor imagem. Durante a pré- produção do projeto Cinema no rio São Francisco, a busca por imagens que apaixonem o público e por personagens da vida real que prendam a atenção da platéia é o maior objetivo. É na pré-produção que rodamos o filme sobre a cidade, exibido antes dos longas metragens. É dessa brincadeira de esconde-esconde que a magia do cinema se realiza. O jogo de espelhamento, no qual a cidade se vê na tela, reconhece o seu lugar e se descobre.

Em Felixlândia

Zé do Aterro mora em frente a casa do Zé do Violão. Cumade Maria teve 23 filhos - daí o nome: todo mundo é cumpade dela. Na cidade de Felixlândia, as pessoas são conhecidas pelos apelidos. Zé do Aterro viajou para Belo Horizonte e Zé do Violão foi à Barra do Paraopeba. Sem ter como entrevistar nomes tão sugestivos, continuamos nossa busca por depoimentos que nos ajudem a reconstruir um pouquinho da história da cidade. É na correria que vamos nos encontrando. Dessa vez, a secretária de Turismo, Leidélia, nos ajudou na primeira rodada pela cidade. Comentando cada detalhe e cada problema que o município enfrenta fomos nos inteirando sobre a enchente que foi até a escola, a barragem que está sendo construída, a expedição que será feita pelo rio Paraopeba e até dos projetos de cinema que ela e sua equipe aprovaram no Ministério da Cultura. É nessa visita em que também nos damos conta dos frutos que a passagem do cinema na região proporcionou. É a primeira vez que o cinema no rio passa por Felixlândia, mas já houve exibições em cidades vizinhas como São José do Buritis. Leidélia não esconde sua paixão pelo cinema e atribui o sucesso dos projetos que estão sendo realizados na cidade à influência e o despertar que o projeto Cinema no Rio trouxe para a região.

Encontramos o mestre do grupo de folia de reis. De forma muito solicita ele concordou em convidar algumas pessoas do grupo para gravar na igreja. Quando chegamos ficamos surpresos. Todos os integrantes estavam presentes, vestidos à caráter para o ritual da folia. Entre conversas e cantigas conseguimos imagens muito representativas. E para jogar com a tradição, saímos pelos bares e lanchonetes da cidade para perguntar o que a folia representa para os moradores de Felixlândia. Enquanto muito disseram não conhecer o grupo, outros se disseram apaixonados por ele. Numa cidade em que os carros de som e as músicas “importadas” parecem dominar, é intrigante perceber o reconhecimento que a folia desperta.