terça-feira, 5 de outubro de 2010

Eterno retorno

Pâmilla Vilas Boas



“O que essa mulher está fazendo?”. “Ela está filmando”, responde o pai de santo. “Caboclo não gosta de filme”. “É para mostrar nosso trabalho”. O caboclo não gostou das câmeras fotográficas, nem das pessoas estranhas. Durante os cânticos da inauguração do terreiro de Ubanda em Barra do Parateca, o caboclo foi a única entidade, que teve vida na terra, e não gostou da nossa presença. O vaqueiro não se importou, nem o marinheiro que sempre bebia cachaça. O Cícero, pai de santo do terreiro, agradeceu nossa presença e pediu uma salva de palmas. Ele queria que seu trabalho fosse mostrado em outros lugares e imaginou que a câmera gigantesca da fotógrafa fosse de filmar. “Nos meus 40 anos de trabalho, nunca ninguém de fora veio para apreciar”, ele diz e repete os agradecimentos sempre que desincorpora alguma entidade.

“Eu não posso ficar na areia, eu não posso ficar no mar. Minhas pernas ficam bambas e começam a rodar”. A gente chegou no terreiro de surpresa, para vivenciar a experiência. Os tambores são hipnotizantes e as cantigas também. Mesmo assim, o sentimento era de estranheza e de incompreensão. As crianças brincam durante os rituais e algumas até participam da roda. Foi difícil assistir a menina de 14 anos grávida incorporar e dançar com tamanha beleza os passos complicados do vaqueiro. Mas ela não ficou muito tempo com a presença dele, antes das cantigas acabarem, ela saiu da roda para se sentar na cadeira.

A menina de 14 anos vai ter filho logo e quer dispensar médico e hospital para ter o filho com a parteira mais famosa da cidade. Maria já pegou duzentas crianças e nunca morreu ninguém em suas mãos. Já passou por partos complicados, por crianças que vem sentadas e com o cordão umbilical em volta do pescoço. O enfermeiro da cidade quer acompanhar um parto com dona Maria que aprendeu tudo na experiência.


Maria recita as poesias do pai que cantava a própria vida

Mas a mãe de pegação, que trouxe tantas vidas para o mundo, tem um olhar desolador de quem por muito foi torturado pela vida. Ela conta dos detalhes do dia em que, durante a labuta, sentiu muita dor. Abortou ali mesmo, pegou o feto que já tinha formato de bebê, guardou num pano e continuou a colheita. Andou cinco quilômetros até sua casa com o sangue escorrendo. Limpou tudo para passar pela cidade e ficou em casa silenciosa. O marido estava bêbado e era mais seguro mantê-lo afastado. Ela sentia a dor em silêncio para que ele não ouvisse. Ficou assim até que uma vizinha estudada aplicou uma injeção e impediu Maria de morrer com hemorragia. Maria não tem medo da morte e diz até preferir do que viver calada com a agressividade do marido que, ao mesmo tempo em que tentava findar a vida da esposa com as facadas no peito, comprava remédio para ninguém ver as feridas pelo corpo. Maria cuidou do marido até a morte. Era assim os casamentos de antigamente, ela explica, até que a morte os separe.

Pâmilla Vilas Boas


Guerra

Maria é descendente de escravos. Assim como a maioria dos moradores de Barra do Parateca. Ela trabalhava na fazenda com seu sogro, até o dia em que foram expulsos por que o dono da fazenda tirou a filha dele. Tirar é um termo mais ameno para falar dos abusos que as filhas dos ex-escravos sofriam nas mãos do senhores.

Barra do Parateca já foi reconhecida como comunidade quilombola e traz logo na entrada da cidade um ônibus queimado como símbolo dos conflitos contra os fazendeiros. Foi justamente a filha de um poderoso fazendeiro da cidade que começou a história de quilombo. Eldina estava fazendo mestrado e começou a estudar as comunidades tradicionais. Barra do Parateca foi seu objeto de pesquisa. Mas o que era para ser apenas um simples objeto começou a se apoderar de todo o processo. O pastor Almir assim que tomou conhecimento da existência do termo quilombo, passou a estudar sobre seus direitos, montou a associação que hoje conta com o apoio da maioria da população do distrito. “A mesma família de Eudina hoje são nossos piores inimigos. Quando começamos a mexer com a terra, eles ficaram contra”, explica Almir.

Almir conta que a família plantava feijão e os negros do distrito trabalhavam a troco de comida. Recentemente, os quilombolas invadiram as terras da união por que não tinham mais onde plantar. “Chegou até polícia Federal. O armamento era para guerra e as crianças nunca tinham visto isso”, comenta Almir. A guerra desigual ainda continua. E os quilombolas disputam com juízes e advogados que fazem parte da família mais tradicional da região. Um passado que retorna nas histórias individuais e coletivas de um povo que busca o espaço de direito.

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