Acordar com o ronco estrondoso do motor. Depois se acostumar com o barulho que passa a fazer parte da natureza. Estar cercado pelo rio todo o momento do dia. Você começa a fazer parte da natureza também. O que poderia ser desconfortável, traz o sono mais tranqüilo do mundo. As cabines são pequenas, com três beliches e um ventilador que pouco ameniza o calor, mas o rio é um sonífero que inspira paz o tempo todo. Durante o café da manhã é o momento de cumprimentar as pessoas e conversar sobre o decorrer do último dia. Mimi e Natasha são as guardiãs da cozinha. Ainda sem saber se elas preferem ser chamadas pelo nome da certidão de nascimento, Vando e Élcio. Mimi se faz de arredia, mas não esconde o fato de gostar de todo mundo do barco e de fazer a comida mais gostosa do mundo. Natasha, que eu carinhosamente chamo de Nati, é boa companheira de buteco e de fofoca.
Mas o zarpar da embarcação não é coisa fácil. A tripulação acorda cedo para arrumar o motor, liberar as cordas e desprender o grande barco que dorme atracado nas cidades por onde fazemos sessão de cinema. O rio está tão raso que parece impressionante o Luminar ainda navegar pelo São Francisco. Carlinhos e Zé baixinho são os motoristas do barco. Eles se impressionam, nunca viram o São Francisco tão raso, mesmo já tendo se aposentado na navegação.
Carlinhos corre para balisar o rio. O barco ameaça parar, faz um barulho de que irá se prender ao chão. Um metro e vinte centímetros, um metro, noventa centímetros, oitenta centímetros. Carlinhos indica a profundidade com os dedos enquanto Zé baixinho navega. Ficamos apreensivos, não dá para navegar com menos de noventa centímetros de água. Zé baixinho reduz a marcha, para o barco. O capitão pega a lancha e sai para verificar os pontos mais profundos do rio. Como quem sabe ler pensamentos, Zé baixinho logo entende para onde deve guiar a embarcação.
Carlinhos me explica que ele sabe a profundidade do rio pelo olho. “Ta vendo aquela linha mais escura do rio. Você percebe outra linha que segue do barranco. Ali é o lugar mais fundo”, ele explica e eu finjo que entendo. Navegar requer conhecimento que vem da experiência e um olhar muito aguçado. Eu tento acompanhar o raciocínio, mas me perco logo no início. Aos poucos vou tomando ciência da sorte e da habilidade da tripulação que fez o Luminar descer de Pirapora até a Bahia, num rio que já não permite navegação como era antigamente. Num rio que de tão raso, não deixa mais transportar carga. No decorrer da viagem, vimos embarcações atracadas por não conseguir seguir seu destino pela falta de água.
Escrevo agora durante minha última viagem pelo rio. Com uma dor que não se entende direito. Como diz Mimi: “Navegar é um vício”. Mimi fez curso de marinheiro, diz que está doida para voltar para casa, mas não esconde a ansiedade pela próxima viagem. Cristiano responsável por fazer funcionar o motor, todo o ano abandona o serviço em São Paulo para vir navegar com o Cinema no Rio. Ele diz que é diferente por causa do cinema e vive com a programação das sessões sempre em mãos. Isso faz com que ele dispense o bom dinheiro que ganha em São Paulo para navegar com o pessoal do cinema.
Marquinhos é o eletricista da Luminar. Ele desenha, pinta e faz sua arte. Gosta da bola de fogo, cachaça que faz ser menos tímido. Ele chegou com uma blusa amarela e queria que a equipe do Cinema no Rio assinasse. Ele queria guardar todo mundo de lembrança e toda hora vestia a camisa cheia de assinaturas. Entrevistamos ele que só dizia das boas amizades dentro da embarcação.
O capitão é o guardião do barco. Ele adquiriu a Luminar que antigamente trafegava pelo São Francisco dando assistência de saúde aos barranqueiros. Hoje a embarcação transporta projetos e pessoas que querem adentrar o rio. Lúcio Barreto viveu história. Perdeu a noiva na guerrilha do Araguaia. Vive com a bandeira do Che estendida no Luminar e quase não viajou com o Cinema no Rio por que não abria mão em substituir a bandeira. “Che era humano e um líder”, ressalta Lúcio.
Uma nostalgia de ter que abandonar o “big barco Brasil”. Brincadeira nossa para falar da convivência, que às vezes é difícil, mas que superamos com as comparações: “Fulano foi eliminado”. Se alguém fica de mau humor, logo contamina todo mundo. No final da viagem o cansaço vai minando a energia da equipe. Mesmo assim, a itinerância traz saudade. Dos jornalistas que vem fazer suas matérias e que adentram um pouco na convivência e dos convidados que passam um período com a gente e que trazem novidade para quem já se esqueceu do mundo lá fora. Saudade de cumprimentar os barquinhos que cruzamos pelo rio, saudade das histórias dos barranqueiros, saudade de poder olhar o São Francisco seco, mas ainda cheio de vida.
Eu disse a vocês que o corpo volta para casa por terra, mas o espírito volta pelo rio. Viscoso, teimoso, numa viagem em sentido inverso, até quando sente saudades do corpo e volta de verdade pra contar e relembrar as histórias.
ResponderExcluirÉ verdade Rangel. Voltamos na espera da próxima viagem!
ResponderExcluirCompreendo seu sentimento de nostalgia, pra quem nasceu e se criou as margens do São Francisco
ResponderExcluirUmbelina