domingo, 15 de setembro de 2013

Palavra de pescador

Dizem por aí que o rio já não enche a mesa do pescador. Que a água está suja, verde, que os peixes não querem nadar no São Francisco, nem fisgar a isca que fica na ponta do anzol. Mesmo quem sai de casa bem cedinho não consegue chegar com o barco cheio. Antes, era só uma tendência, observada por aqueles que vivem em simbiose com o rio. A tendência tornou-se realidade em pouco tempo.

Foto: André Fossati

Todo mundo dá pitaco e muita gente faz alarde, mas quem sabe mesmo dos prazeres e as dores de viver ao lado de um São Francisco degradado são os pescadores. Hilton Honório é um deles. Com 50 anos de vida na beira do rio, Hilton diz que nunca teve motivos para reclamar da pesca porque de dois em dois anos tinha enchente. Apesar dos problemas que as enchentes trazem, são elas que alimentam o Velho Chico pois quando ela chega a água vai para as lagoas, onde estão armazenados os peixes, e os leva para o rio. Agora, com a seca e a falta de enchentes, a situação é crítica. "Depois que acabaram as enchentes acabou o peixe", diz.

A esse problema se somam outros, como a poluição provocada pelas indústrias e pela rede de esgoto que provocam a mortandade de peixe de maneira esporádica. A adesão ao uso da rabeta (motor de barco) também atrapalhou a vida no rio, pois ajudou os pescadores a irem mais longe e conseguir pegar mais peixes.

Todos esses dados levam a crer que o número de pescadores diminuiu. Mas essa óbvia conclusão não é acertada. Segundo Hilton, há mais pescadores no município. "Existem 300 associados à colônia de pescadores de Pedras de Maria da Cruz. É um número alto. Antes o pescador não se interessava muito pela pesca, porque o ganho era pouco. Mas com o seguro desemprego os pescadores se interessaram mais. Isso garante que durante os quatro meses da Piracema a gente ganhe seguro-desemprego", explica. Ele mesmo admite que muitos dos novos associados sabem pescar "mais ou menos". Ri da piada, mas não desvia o olhar.

Foto: Inácio Neves

A solução para quem não trabalha no rio é viver no "seco". Não por menos, a cidade tem um grande número de pessoas empregadas pela prefeitura ou no setor de serviços. Antigamente, quando essas alternativas eram escassas, as pessoas buscavam um emprego na terra. Os problemas ambientais, porém, não atrapalharam só a pesca. "A terra enfraqueceu. Tanto as ilhas quando os lotes na beira do rio. Então o pessoal vai abandonando", conta. Muitos venderam a terra antes de a situação piorar, ou mesmo por pressão dos grandes fazendeiros.

O pai de Hilton foi uma das vítimas. "Meu pai tinha 5 hectares de terra documentado e o fazendeiro queria tirar dele de qualquer jeito. Acionamos a justiça e ganhamos. O próprio juiz falou para ele para deixar meu pai em paz, porque o fazendeiro já tinha milhares de hectares, Mas aí ele mandou jagunço matar meu pai. Deus ajudou, porque sempre que ele mandou gente lá a fazenda tava vazia. Mas meu pai ficou com medo e vendeu a terra para outra pessoa. Essa pessoa era comprador do fazendeiro", rememora. A luta do mais fraco com o mais forte no território do Velho Chico ainda é desleal.

Por Juliana Afonso

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Vida musical

"Choro santo do bom Deus
Gerou vida, planta, flor
Peixe, bicho, passarinho
E na sua ribanceira
À sombra do juazeiro
Muita gente se arrochou"

Por onde passam as águas do Velho Chico passam também as histórias de milhares de pessoas. É por isso que muitas delas já dedicaram estrofes, versos e até músicas inteiras a esse caudaloso rio. Com um breve passeio é fácil notar que, sem ele, nem metade das comunidades teriam sobrevivido nas secas terras que o bordeiam.

Foto: Juliana Afonso

Maria de Lourdes Oliveira, mais conhecida como Dona Lurdinha, nasceu em Itacarambi. Seus pais se mudaram para a cidade logo depois do casamento, com a promessa de uma vida melhor. Talvez por isso que ela cante Meu Rio São Francisco com tanta força. Essa alegre senhora de cabelos grisalhos e brincos de pérola falava sorrindo sobre os 68 anos vividos à beira do do rio, onde a água, a comida, a família e a própria vida eram comemoradas a cada dia como uma benção. "Esse rio é tudo pra mim e pra meu povo. Não tem como imaginar o que seria disso aqui sem ele", afirma.

De todas as alegrias que o rio deu à Dona Lurdinha, a música é a maior delas. O Reizado, o São Gonçalo e o Batuque são algumas das tradições das quais nunca deixou de lado. Os cantos e os ritmos fizeram parte da sua vida desde pequena. "Minha mãe sempre participou do Reizado. Ela tinha uma voz linda, linda". Aos 16 anos, com a permissão da mãe, ela pode entrar na roda.

Fomos recebidos de braços abertos e toques de zabumba. O hino de Itacarambi, o Meu Rio São Francisco e as melodias do Reizado formaram a trilha sonora que acompanhou a nossa tarde e que acompanha, ainda hoje, os dias de festa do grupo.

Foto: André Fossati

O grupo nunca deixou de cantarolar os ritmos que embalam a vida dos ribeirinhos, ainda que com o tempo e as mudanças da vida, muitos saíssem e muitos entrassem. De uns tempos pra cá, essa perda foi ainda maior, mas a Dona Lurdinha e seu marido sustentaram a tradição em Itacarambi. "Ficamos parados por um tempo, mas nunca abandonamos. O pessoal diz que se eu deixar o grupo muita gente vai querer deixar também. Não tem como parar, ne?", ri, com a sorriso de quem sabe a importância que a cultura tem.

Por Juliana Afonso

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Outro olhar

A cada vez que o barco do Cinema do Rio atraca em uma nova cidade, a equipe de água se encontra com a equipe de terra para começar as pesquisas culturais e os preparativos para sessão. As atividades incluem uma oficina fotográfica com crianças e adolescentes com a proposta de estimular novos olhares para o seu espaço.

Foto: André Fossati

Em tempos da popularização da imagem e sua mediação instantânea, as oficinas, ainda que curtas, trazem a reflexão sobre a fotografia documental, a fotografia como arte, ou até o fotojornalismo e outras vertentes em que a imagem supera a condição de puro registro.

A inspiração para as crianças são fotografias com recortes criativos, uso lúdico da luz e a sombra, espelhos d’água, contrastes e detalhes que contam histórias e provocam reflexões.

Foto: André Fossati

Segundo o fotógrafo Luiz Ferreira, um dos facilitadores da oficina, com o advento da máquina digital, grande parte das crianças não vêem mais a experiência de fotografar como algo inédito. “Na verdade, o encantamento vem das novas abordagens da imagem. Geralmente, os adolescentes estão acostumados a voltar a câmera para si ou para o espelho, a nossa proposta é estimulá-los a voltar a câmera para as suas cidades e comunidades para que eles possam perceber a própria realidade”.

Luiz relata que, muitas vezes, quando a criança pega uma câmera, ela consegue recortar cenas que lhe pareciam banais. Isso faz com que ela valorize ou entenda melhor seus próprios espaços.

Foto: José Maria durante a Oficina lúdica de fotografia em Cachoeira do Manteiga

O educador lembra que desde seu surgimento, a fotografia é usada para memória, mas que também pode ser usada para a expressão abstrata, sensível e poética. “A fotografia é a escrita com a luz, mas nos acostumamos a escrever apenas textos dissertativos, podemos aprender a escrever crônicas, poesias, contos”.

Por Camila Fróis

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Relatos de um tempo bom

Antigamente era muito bom. Tinha muito vapor. Eles chegava era todo dia. Tinha o Wenceslau, o Benjamin, o Barão, o Mata Machado. O único que escapou dessa mortandade foi o Benjamin. Mas só anda lá, pra cá não vem porque ta seco. O rio foi aterrando, aterrando, que nem vapor tem mais. No tempo bom o rio era cheio, com muita água, muito peixe. A coisa que eu mais gostava nessa época era pescar. Eu pescava de linha, pra me divertir mesmo. E tinha muito peixe. Agora o rio ta seco. Olha moço, foi bom tempo pra pouco tempo.

Foto: Inácio Neves

Um dia eu fui apanhar água no rio e chegou o Wenceslau Braz. Porque eu fiquei olhando pro vapor, com a lata na mão, meu pai me puxou e disse "moleque, enche a lata e vai embora". Eu enchi a lata e fui embora. Outro dia aconteceu a mesma coisa e um caciquinho puxou a minha orelha. Eu fui embora e ainda fui feliz. Ele puxou minha orelha e não contou nem meu pai. Porque se ele contasse não ia ficar assim (risos). No tempo antigo o pai corrigia o filho. Quando eu era criança ele falava "vai fazer isso", e eu fazia, ou "vai sentar ali", e eu sentava. 

A melhor lembrança que eu tenho é do meu tempo de criança, de rapazinho. Eu panhava a minha espingarda pra caçar. Andava pra todo lado. Pegava minha linha e ia pra beira do rio. Pescava tudo que era peixe. Hoje eu não posso pegar uma espingarda, não posso puxar uma linha. Se eu saio com uma arma a polícia me toma porque não pode atirar. Se eu vou no rio, jogo a linha e não pego nada.

Januária era bom. Aqui tinha duas bandas de música muita boas. Hoje não tem nada. Acabou tudo. Naquele tempo tinha rede de caboclo, tinha rede de pastoras, tinha a marujada. Hoje acabou tudo por causa dessas políticas porcas. Até as festas que tinha aqui acabaram. A Semana Santa era boa. Na Semana Santa você tem que comer carne porque não acha peixe.

Você sabe de uma coisa? Januária tinha bonde. Ele saía de onde antigamente era a Barra e vinha até a praça aqui. A linha ia da casa do fazendeiro até o sitio do fazendeiro. Esse fazendeiro era italiano que vinha de uma família muito rica. Eles tinham muito gado. Ele fez o bonde azulinho, e de madeira, de fora a fora. Só a família dele usava. E ele montava no bonde, enchia de flores e ia cantando. Os homens iam tudo atrás. Um dia o bonde descarrilhou e machucou um monte de gente. Aí eles decidiram desmanchar. Nunca mais teve bonde. Tem uma rua aqui e, Januária que chama rua do Bonde por causa disso. 

Também lembro do cinema, mas já tem mais ou menos 50 anos que eu não vou em um. Porque depois que acabou o Cinema aqui em Januária nunca mais eu fui. Naquele tempo a gente via Tom Mix, Buck Jones, naquele tempo era só camarada atirando nos outros. Os filmes era bom, mas era muita zueira. Ali ia muita gente fazer porquera (risos). Um dia o Mestre Minervino, marceneiro, foi no cinema. Ele saiu de lá, botou um revólver na cintura e atirou num compadre dele. Pegou também numa criança e numa senhora. Ai foi pra cadeia, ficou, ficou, e saiu muito tempo depois. Ele gostava de beber uma cachacinha. Aí quando ele saiu da cadeia, foi pra rua e comprou umas bananas, aqueles babanões. Colocou uma no bolso e saiu comendo a outra. O pessoal viu uma coisa na cintura dele e começou a falar "seu Minervino ta com o revolver!", e a policia foi atrás dele. Quando a polícia deu pra prender, ele colocou a mão no bolso, tirou a banana e apontou pra todo mundo. Os policial já tava tudo deitado e ele com a banana assim ó (risos). Num é que um soldadinho muito sabido pulou atrás dele, pegou o "revólver" e falou "aqui gente, isso é uma banana" (risos). Seu Minervino ficou até sem graça. Mas esse dia não teve quem não riu, moço.

Foto: André Fossati

Essa coisa de polícia é engraçado. Aquele era o tempo da burragem, moço. As patentes era tudo comprada. Os fazendeiros comprava patente de coronel, comprava patente de tenente. Tinha um que fez mal a uma pretinha. E ela deu parte dele. O coronel mandou prender. Quando esse homem apresentou a patente de coronel, o coronel de verdade pegou o papel e vrap-vrap. Rasgou tudinho. O homem gritou "Minha patente!!" e o coronel disse "Essa patente aqui tem mais valor em um cachorro do que em você" (risos). Ai ele fez o homem casar com a negrinha e danou a rir.

Naquele tempo era barca, aquelas barcas grandes, quase do tamanho de um vapor. Eles cobriam tudo com aquelas palhas de côco por causa da chuva. E ficavam seis homens de um lado e seis homens do outro lado com aquelas varonas compridas, para ir empurrando. E também tinha o leme, que movimentava a barca pra onde eles queria. E os homens remando. Quando eles pegava a vara, eles empurravam ela com o peito e feria. Então eles pegava a gordura do toucinho quente e colocava na ferida. Aquilo queima e depois adormece. Doía. Quando sarava, eles botava um pano e ia remando, tudo calejado. Eles se chamavam remeros. Não era só preto não, também tinha muito branco. Eles ganhavam muito bem, os remeros. Viajavam de Pirapora até Juazeiro. E voltavam. Subiam o rio no remo.

Esse rio São Francisco era um rio muito fundo. O pessoal vinha muito aqui pra pescar e vender. E tinha uma velha que chamava Januária, que morava na beira do rio. Ela comprava sal, querosene, na mão daqueles barqueiros e vendia pro povo. O povo morava no brejo do amparo. Pra você vir do brejo aqui em Januária você tem que vir com um bom armamento, porque tinha índio e onça. Naquele tempo era muito perigoso. E a velinha que morava lá comprava as coisas e ia pra dentro do brejo, pro povo comprar. O nome da velha passou pra cidade. Depois o rio foi descendo e o pessoal do brejo foi mudando pra cá. Mas ficou Januária. 

O texto foi tirado de uma entrevista com Irênio de Souza Santana, morador de Januária. 94 anos. Irênio é artesão. Com chapas de metal, ele produz cuscuzeiras e outros utensílios de cozinha.

Por Juliana Afonso

sábado, 7 de setembro de 2013

Educação para a cultura



Antes era tudo diferente. Todo mundo vivia no rio, brincava no rio, tomava banho no rio. O rio era o máximo. Agora o movimento é lá em cima. Os barzinhos também estão lá em cima, na beira do asfalto. Hoje, o asfalto é o máximo. Todo mundo vai para o barzinho olhar para o asfalto. E o rio, o velho rio, o Velho Chico, fica lá embaixo.

Foto: André Fossati

Enquanto Ludmila rememorava os tempos de infância, o salão se enchia de cores. Parecia que ela contava as lembranças desde a beira do rio, com os pés na água.

Das lembranças que povoam a memória de Ludmila, as melhores são as dos festejos da cidade. Congado, Batuque, São Gonçalo. "Eu participava muito quando era criança. Fui morar em Belo Horizonte aos 10 anos, mas sempre voltava nos feriados. Eu adorava", confirma. Tanto, que ela foi para Londres fazer um MBA na área da cultura. "As  pessoas pensam que eu faço essas coisas porque fui morar em Londres. Mas eu não passei a gostar porque estudei, eu estudei porque gostava", explica. Não por menos, ela se tornou a Secretária de Cultura da Cidade.

E Ludmila chegou querendo mudar as coisas. O projeto de Educação Patrimonial começa em setembro. A cadeia da cidade vai virar museu e escola de danças folclóricas. O Batuque, o Bumba-meu-boi e o São Gonçalo vão voltar. A banda centenária da cidade foi reativada.

Os problemas atuais não são de incentivo, são financeiros. "Antigamente os grupos tocavam, dançavam e formavam alunos gratuitamente. Mas agora, sem apoio, ninguém toca. Esse não deveria ser o objetivo principal. Cultura não combina com dinheiro." A luta de Ludmila é para que, com o tempo, a cultura volte a fazer parte de São Romão e a vontade de contribuir venha de maneira espontânea.

Foto: André Fossati

A secretária também conta com incentivo externo. Mas são poucos os projetos que vem de fora. O Cinema no Rio é o único na área de cinema. Esse ano o projeto levou os filmes Rio e Vou rifar meu coração, além do curta O fim do recreio. "O Cinema no Rio é muito interessante para as crianças. Inclusive o fato de ver filmes brasileiros, ao invés da programação estrangeira que tem na televisão", opina. Para Ludmila, os filmes brasileiros ajudam as crianças a compreenderem o contexto em que vivem e também a conhecerem uma nova forma de interagir com ele. Com o tempo, as crianças de São Romão também poderão contar suas histórias, com os pés na beira do rio.

Por Juliana Afonso