segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Relatos de um tempo bom

Antigamente era muito bom. Tinha muito vapor. Eles chegava era todo dia. Tinha o Wenceslau, o Benjamin, o Barão, o Mata Machado. O único que escapou dessa mortandade foi o Benjamin. Mas só anda lá, pra cá não vem porque ta seco. O rio foi aterrando, aterrando, que nem vapor tem mais. No tempo bom o rio era cheio, com muita água, muito peixe. A coisa que eu mais gostava nessa época era pescar. Eu pescava de linha, pra me divertir mesmo. E tinha muito peixe. Agora o rio ta seco. Olha moço, foi bom tempo pra pouco tempo.

Foto: Inácio Neves

Um dia eu fui apanhar água no rio e chegou o Wenceslau Braz. Porque eu fiquei olhando pro vapor, com a lata na mão, meu pai me puxou e disse "moleque, enche a lata e vai embora". Eu enchi a lata e fui embora. Outro dia aconteceu a mesma coisa e um caciquinho puxou a minha orelha. Eu fui embora e ainda fui feliz. Ele puxou minha orelha e não contou nem meu pai. Porque se ele contasse não ia ficar assim (risos). No tempo antigo o pai corrigia o filho. Quando eu era criança ele falava "vai fazer isso", e eu fazia, ou "vai sentar ali", e eu sentava. 

A melhor lembrança que eu tenho é do meu tempo de criança, de rapazinho. Eu panhava a minha espingarda pra caçar. Andava pra todo lado. Pegava minha linha e ia pra beira do rio. Pescava tudo que era peixe. Hoje eu não posso pegar uma espingarda, não posso puxar uma linha. Se eu saio com uma arma a polícia me toma porque não pode atirar. Se eu vou no rio, jogo a linha e não pego nada.

Januária era bom. Aqui tinha duas bandas de música muita boas. Hoje não tem nada. Acabou tudo. Naquele tempo tinha rede de caboclo, tinha rede de pastoras, tinha a marujada. Hoje acabou tudo por causa dessas políticas porcas. Até as festas que tinha aqui acabaram. A Semana Santa era boa. Na Semana Santa você tem que comer carne porque não acha peixe.

Você sabe de uma coisa? Januária tinha bonde. Ele saía de onde antigamente era a Barra e vinha até a praça aqui. A linha ia da casa do fazendeiro até o sitio do fazendeiro. Esse fazendeiro era italiano que vinha de uma família muito rica. Eles tinham muito gado. Ele fez o bonde azulinho, e de madeira, de fora a fora. Só a família dele usava. E ele montava no bonde, enchia de flores e ia cantando. Os homens iam tudo atrás. Um dia o bonde descarrilhou e machucou um monte de gente. Aí eles decidiram desmanchar. Nunca mais teve bonde. Tem uma rua aqui e, Januária que chama rua do Bonde por causa disso. 

Também lembro do cinema, mas já tem mais ou menos 50 anos que eu não vou em um. Porque depois que acabou o Cinema aqui em Januária nunca mais eu fui. Naquele tempo a gente via Tom Mix, Buck Jones, naquele tempo era só camarada atirando nos outros. Os filmes era bom, mas era muita zueira. Ali ia muita gente fazer porquera (risos). Um dia o Mestre Minervino, marceneiro, foi no cinema. Ele saiu de lá, botou um revólver na cintura e atirou num compadre dele. Pegou também numa criança e numa senhora. Ai foi pra cadeia, ficou, ficou, e saiu muito tempo depois. Ele gostava de beber uma cachacinha. Aí quando ele saiu da cadeia, foi pra rua e comprou umas bananas, aqueles babanões. Colocou uma no bolso e saiu comendo a outra. O pessoal viu uma coisa na cintura dele e começou a falar "seu Minervino ta com o revolver!", e a policia foi atrás dele. Quando a polícia deu pra prender, ele colocou a mão no bolso, tirou a banana e apontou pra todo mundo. Os policial já tava tudo deitado e ele com a banana assim ó (risos). Num é que um soldadinho muito sabido pulou atrás dele, pegou o "revólver" e falou "aqui gente, isso é uma banana" (risos). Seu Minervino ficou até sem graça. Mas esse dia não teve quem não riu, moço.

Foto: André Fossati

Essa coisa de polícia é engraçado. Aquele era o tempo da burragem, moço. As patentes era tudo comprada. Os fazendeiros comprava patente de coronel, comprava patente de tenente. Tinha um que fez mal a uma pretinha. E ela deu parte dele. O coronel mandou prender. Quando esse homem apresentou a patente de coronel, o coronel de verdade pegou o papel e vrap-vrap. Rasgou tudinho. O homem gritou "Minha patente!!" e o coronel disse "Essa patente aqui tem mais valor em um cachorro do que em você" (risos). Ai ele fez o homem casar com a negrinha e danou a rir.

Naquele tempo era barca, aquelas barcas grandes, quase do tamanho de um vapor. Eles cobriam tudo com aquelas palhas de côco por causa da chuva. E ficavam seis homens de um lado e seis homens do outro lado com aquelas varonas compridas, para ir empurrando. E também tinha o leme, que movimentava a barca pra onde eles queria. E os homens remando. Quando eles pegava a vara, eles empurravam ela com o peito e feria. Então eles pegava a gordura do toucinho quente e colocava na ferida. Aquilo queima e depois adormece. Doía. Quando sarava, eles botava um pano e ia remando, tudo calejado. Eles se chamavam remeros. Não era só preto não, também tinha muito branco. Eles ganhavam muito bem, os remeros. Viajavam de Pirapora até Juazeiro. E voltavam. Subiam o rio no remo.

Esse rio São Francisco era um rio muito fundo. O pessoal vinha muito aqui pra pescar e vender. E tinha uma velha que chamava Januária, que morava na beira do rio. Ela comprava sal, querosene, na mão daqueles barqueiros e vendia pro povo. O povo morava no brejo do amparo. Pra você vir do brejo aqui em Januária você tem que vir com um bom armamento, porque tinha índio e onça. Naquele tempo era muito perigoso. E a velinha que morava lá comprava as coisas e ia pra dentro do brejo, pro povo comprar. O nome da velha passou pra cidade. Depois o rio foi descendo e o pessoal do brejo foi mudando pra cá. Mas ficou Januária. 

O texto foi tirado de uma entrevista com Irênio de Souza Santana, morador de Januária. 94 anos. Irênio é artesão. Com chapas de metal, ele produz cuscuzeiras e outros utensílios de cozinha.

Por Juliana Afonso

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