sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Palmerinha




por Fernanda de Oliveira
Nas Pedras, como chamam os moradores locais se referindo a cidade Pedras de Maria da Cruz , nosso destino tinha passagem certa pelo Quilombo Palmerinha. Parceria de longa data pela constante relação com o quilombola Agmar, que conhecemos desde o Cinema no Rio São Francisco de 2006. De lá pra cá trocamos muitas correspondências, visitas e ajudas mútuas, na função pela cultura e pela manifestação da diversidade da gente.

Outro rumo certo foi o encontro com quatro senhorinhas, todas ancestrais de Palmerinha, na casa da sobrinha Neide, prima de Agmar, liderança da Pastoral Negras de Pedras de Maria da Cruz e do Reis das Pastorinhas, do qual fazem parte as quatro senhorinhas: Marcelina (78 anos), Maria (77 ), Isabel (74), e Maria da Conceição, a Bié (75). Todas mulheres cantadeiras e batalhadeiras nessa vida de tanta luta . Mudaram-se do quilombo há cerca de 20 a 50 anos, todas elas por necessidade de atenção especial à saúde. Coisa que mesmo na rua – como chamam a cidade – não é fácil conseguir. Quanto mais em Palmerinha, desassistida das autoridades que, tradicionalmente, atribuíam a todo lugar habitado por índios e por negros, um vazio demográfico. Estratégia de invisibilização dessa gente forte. Política social e econômica para restringir qualquer distribuição – de renda, de força, de acesso a auto-determinação.

Cantaram e cantaram suas lembranças de roda, de batuque e do Reis das Pastorinhas. Folgaram conosco, generosamente, oferecendo ao registro, seus encantos de gente velha e sabida que conhece e faz seu próprio tempo. Ficaram felizes pela sua participação no vídeo da cidade. Felizes conosco e com Agmar, o sobrinho que é “o único que considera a gente como gente”, reforçou dona Bié, na sua condição de idosa, negra e mulher, condições muito adversas nesse mundo reservado aos jovens, brancos, machos e proprietários.

Em Palmerinha fomos recebidas por Seu Dão, o João Gualberto (cerca de 74 anos), e seu irmão Domingos (76). Desde de 2007, quando conhecemos Seu Dão, ele manifestara muita vontade de participar de uma filmagem para “falar assim do tempo de antigamente”, das “ profissias dos antigos”, dos encantados d’água... Lavrador e pescador, muitas vezes canoeiro, Seu Dão conhece do rio, um tanto. De até encontro com o caboclo d’água, ele mesmo na sua feia figura: “um pretinho, baixotinho, esquisito, mal encarado, que queria virar meu barco e me trazer um prejuízo”.

Da voz das profissia, Seu Dão enfatizou aquela que dizia de um tempo em que surgiria uma cobra grande, enorme e preta, sem começo nem fim, que devastaria o mundo enchendo-o de coisa ruim: essa cobra devia de ser o asfalto. A rua preta, escura, por onde passa tanta coisa boa, mas tanto mais coisa malina, veneno de alimento, bandido ferino, doença, impaciência, desvario. “Cobra que a gente não sabe onde começa nem onde termina”. As professias.

Dessas histórias, a comadre Cidelcina (66), sabia um tanto e quis contar pra gente. No princípio resistiu a filmagem, pois que não se sentia a vontade em ser gravada para sempre. Mas foi se envolvendo na conversa, na sedução de vincular-se a gente alheia, de fora e longe. “De onde eu vim, não sei. Porque eu não perguntei. Só sei pra onde eu vou.” Contou da sua vida, a Cidelcina. Da filha nascida que foi sua boneca, uma vez que tornou-se mãe bem jovem. E que, de criança, a mãe lhe queimara as bonecas tão estimadas, porque julgava que o brinquedo lhe desviava da obrigação. Brincou de boneca até os 14 anos. Bordava ela mesma toda a roupinha das bonecas.

“Hoje minha filha diz que eu já era. Que sou velha. A gente é da era. Mas sabe mais do que esses jovens de hoje, Que sabem das letras mas não sabem da vida. Eu sou da era, e sei mais do que você. Penso melhor do que muitos estudados. Não se defende com a leitura. ”

Teve também senhor Feliciano (76), um rezador de qualidade, pai de 22 filhos, rimador,poeta e filósofo popular. “A brincadeira, naquela época, não tinha decepção”. Aquela época, diz-se da juventude de Feliciano, quando o divertimento maior era “quebrar as cadeiras das meninas” na dança de um forró arroxado. “Leitura, eu não tenho. Mas sou respeitador”. Desde criança, Feliciano assuntava a reza dos mais velhos, ouvia tudo com atenção e sentia que era aquele um seu destino. Além dos tantos outros fazeres que hoje desfia pela sua memória, olhando à distância, sua obra desenvolvida pela vivência curtida. ‘Aprendi com meu próprio assunto. Se você não assunta, você não aprende, não”.

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