quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Gravatas vermelhas

André Fossati



“Bom o filme e bem editado”. Eu e o pescador Vicente assistimos o filme juntos. Em Malhada na Bahia os pescadores, as crianças, os idosos, adolescentes, trabalhadores rurais, todo mundo se ajeitou para assistir a sessão de cinema na praça. Vicente comentava o filme o tempo todo. “Não é o valor, é o benefício”, ele corrige a entrevista com o quilombola que explicava a origem da comunidade. “Eu também vivo nesse engano”, ele diz. Vicente tem uma terra de quatro hectares na beira do rio. Tanto ele como o pessoal do filme espera a cheia vir, molhar a terra para plantar. “Mas eu não perdi nenhum ano”, o pescador se orgulha de nunca ter perdido plantação nenhuma por causa das enchentes.

Depois do filme ele reflete: “todo mundo precisa de terra para sua honra”. Vicente entendeu bem a narrativa do quilombo e a importância da terra para a vida dessas pessoas que sabem muito o que é cultivar e, para ele também, que sempre levou a vida com a terra e com o rio.

Encontrei Vicente enquanto conversava com o pescador Tomás. Ele se aproximou: “é melhor conversar do que assistir TV”. “Tomás está me contando a história de João Duke”, eu disse. E Vicente respondeu que gostaria de ouvir as histórias também . Vicente acha o cinema importante demais e gosta de ver os causos dos antigos registrados. Assim, os dois pescadores conversam e me contam de um tempo que não volta mais.

Tomás era filho do pistoleiro que trabalhava para o coronel João Duke. O pai esteve presente defendendo o coronel na sua luta contra o capitão Alkimim e em sua disputa pela região de Malhada e Carinhanha. Dentro do rio três embarcações com os revoltosos de camisa preta e gravata vermelha. O pai de Tomás estava atocaiado no São Francisco. Numa ilha que Tomás me aponta com o dedo. Ele se junta com os revoltosos e vence a disputa contra Alkimim. Capitão Duke assume o poder da região e pega de volta sua mulher que havia sido roubada pelo adversário. “Eles contam que no dia do tiroteio, quem estava em Malhada só conseguia ver uma nuvem de fumaça vindo de Carinhanha”, diz. As duas cidades são divididas pelo rio.

Rio que hoje se atravessa a pé. Tomás me diz que nenhum ponto do São Francisco, nessa região, tem fundura. O pai de Tomás já havia lhe avisado, ainda num tempo de rio cheio e de peixe com abundância. Para ele, o que sustentava o rio era a veia de água que vinha da Serra da Canastra, região da nascente do São Francisco. “È como a veia que vem do coração. Se cortar a gente morre”, compara. O problema, de acordo com Tomás, é que construíram a represa por cima da veia do rio. Hoje seu destino é a morte e a rasura.
André Fossati


Tomás e Vicente se lembram dos vapores e das festas nos antigos portos. “O apito do vapor Barão era tão bonito que as mulheres choravam quando o vapor chegava”, conta Vicente com a nostalgia estampada nos olhos. Enquanto os velhos se lembram do rio e da época que não existe mais, as crianças se divertem em frente da embarcação Luminar que traz o pessoal do cinema, como eles mesmo dizem.

Túlio, com onze anos, passa a manhã tentando se comunicar com os tripulantes da embarcação que até se parece com os vapores da época. Faz as vezes para chamar a atenção. Canta música do Chitãozinho e Xororó sobre o rio, paga de fotografo com a câmera de Cris. E diz: “Você vai escrever sobre mim também, né?”. Túlio tão criança e já se preocupa em ter a sua vida registrada.

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