segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Uma terra para morrer


Pâmilla Vilas Boas

Foi pega no laço. Depois amarrada e domesticada pelo fazendeiro no entorno de Buritizeiro. Para ver se já estava amansada, ele jogava uma galinha no cativeiro. A fome e o ódio eram tamanhos que a pequena índia rasgava a galinha no dente. Mas com o tempo foi se acostumando com as angústias da vida, foi tendo que perder a raiz. Raiz de tradição e, mais importante ainda, a raiz que a ligava a terra, ao chão, a vida, a sobrevivência. Essa é a lembrança de Matilde, indígena Cariri, durante a seção de cinema em Buritizeiro, onde ela me contava um pouco da sua história que começa com a lembrança do rapto da bisavó. Ali, sentada na cadeira, acuada, quieta, silenciosa. Um grande acaso, eu ter conversado com Matilde e ter ouvido tanta história que não se conta e que não se escuta. Um passado silenciado que fez parte da construção da famosa Buritizeiro.

No começo era só mato, quando forasteiros e nativos da região disputavam a posse das terras na beira do São Francisco, famoso rio coberto de diamantes. No meio da disputa, os índios Cariris que já habitavam a região, foram mortos e enterrados, lado a lado, no hoje conhecido cemitério dos índios. Ninguém sabia, até a instalação do SAAE no lugar. O desenterrar dos crânios remontaram toda a história.

Algumas famílias sobreviveram, dentre elas, a família de Matilde que foi viver numa terra abandonada, perto de Buritizeiro. Por lá, passaram pela guerra da fome. Com a enchente de 1979 não tinha como buscar comida, a não ser as raízes de pau. Lampião também passou por lá, nas suas andanças e na matança de quem o contrariava. Seu Manuel, pai de Matilde, viu tudo isso e conta também da época em que trabalhava para um fazendeiro da região. Época em que fora escravizado sem saber. Trabalhavam por comida, que era superfaturada pelo fazendeiro. Com o dinheiro acumulado pelo trabalho da família indígena, ele conseguiu o recurso necessário para comprar as terras, ocupadas pela família de Matilde.

“Tem dia que eu alembro e fico duas noites sem dormir”. Manuel prefere não recordar do dia em que teve a terra tomada e a casa destruída na sua frente pelo mesmo fazendeiro que o escravizara. “Qual foi sua reação?”, eu interroguei sem consciência da crueldade da pergunta. Ele se calou, ficou olhando para o infinito. “Ele não fez nada, ficou chorando. Eu mesma achei que ele não iria agüentar, mas está aí vivo até hoje”, interrompe Matilde que faz questão de contar tudo que lembra. As terras foram tomadas recentemente e Manuel não teve como recorrer. O único advogado que tentou defender a família, foi morto. Manuel e a esposa passaram um tempo se escondendo por causa das ameaças de morte.

Mesmo assim, Manuel prefere não comentar sobre suas raízes indígenas, mesmo que o cinto com a imagem de um índio americano pudesse sugerir suas referências. Ele fala das cabeças de porcos perdidas com a tomada da terra e conta da sua vida após a devoção. Seu relato começa, sempre, de quando se tornou devoto da folia de reis. “Tem hora que é bom ser índio, mas tem hora que não é. Meu pai passou leite de madeira nos dentes, caiu tudinho. É que índio tem dente grande, fácil de perceber”, lembra Matilde completando o silêncio ensurdecedor dos pensamentos do pai.

Matilde lembra que de falecido na sua família não tem ninguém, que todo mundo foi assassinado. Menos a avó carrasca que enterrava os filhos até a cintura para eles ficarem quietos, quando ela tinha que sair de casa. Com isso sua mãe ficou paralítica. Matilde não gosta muito de açúcar e prefere alimento cru. O sonho é voltar para o campo, sente uma necessidade forte que a leva em direção da tão sonhada terra. “A gente fica recolhido sem poder voltar para o lugar de onde veio”, diz. Ela se casou com um descendente de espanhóis que quer se mudar de Buritizeiro. Matilde insiste, quer ficar onde moram seus pais e seus avós, onde sua família criou seus irmãos, venceu a fome e fincou raízes.

6 comentários:

  1. Forte e necessário! Salve essa força insistente!

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  2. Não sei se me emociono com a tristeza da história ou com o coração da moça que escreve.

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  3. Pamilla. Você é Euclides da Cunha em corpo feminino de nossos tempos...muito tocante essa história, que poderia ser ficção, mas infelizmente é a vida real...

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  4. O relato ficou incrível, a palavra é essa. Fico pensando em como cada lugar é uma história, cada terra carrega as marcas de quem passou, sofreu, viveu ou morreu por ali. E também pensei em quão grande é nossa pequenez, perto de histórias assim...

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  5. É difícil superar essa história. Tão triste e tão real. Valeu demais pelos comentários!!

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